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“AOS PEDAÇOS” – Fragmentos de paranoia

O labirinto psicológico de uma mente dividida é um terreno fértil para o cinema, mas nem sempre a execução acompanha a ambição. AOS PEDAÇOS  aposta na teatralidade e na fragmentação para construir um thriller psicológico, mas se perde na própria estrutura. O jogo de identidades, duplicações e espaços idênticos cria uma atmosfera intrigante, mas a falta de aprofundamento das relações entre os personagens e o ritmo arrastado acabam minando o impacto da narrativa. O filme revela mais um exercício de estilo do que uma história envolvente, deixando a sensação de que o potencial do conceito não foi plenamente explorado. Apesar disso, há momentos de grande impacto visual, e a proposta de construir um cinema que desafia convenções pode despertar interesse em quem aprecia obras mais experimentais. A estética cuidadosamente planejada, com uma composição meticulosa de luz e sombra, revela a tentativa de transmitir visualmente os conflitos internos do protagonista, mesmo que a trama nem sempre sustente essa profundidade.

Eurico Cruz vive entre duas casas idênticas, uma no deserto e outra em uma praia tropical. Em cada uma delas, há uma esposa: Ana e Anna. Apesar das semelhanças entre os espaços e as relações, sua vida meticulosamente dividida começa a ruir quando recebe um bilhete anônimo anunciando sua morte iminente. A perturbadora visita de Eleno, um homem envolto em mistério, intensifica sua paranoia, e Eurico se vê preso em um jogo psicológico em que nada é o que parece. Os limites entre realidade e ilusão começam a se desfazer, os espaços se confundem e as personalidades se embaralham, enquanto ele tenta desesperadamente descobrir quem o ameaça e qual o verdadeiro significado desse labirinto de reflexos e sombras.

(© Pandora Filmes / Divulgação)

Dirigido por Ruy Guerra, “Aos pedaços” carrega uma forte identidade autoral. O cineasta constrói uma atmosfera carregada e simbólica, na qual luz e sombra são exploradas com precisão para refletir a dualidade do protagonista. No entanto, a escolha por uma abordagem teatral, com planos longos e uma mise-en-scène rígida, acaba tornando o filme excessivamente artificial. A sensação é de que a narrativa está enclausurada dentro da própria estética, impedindo uma conexão mais visceral com os personagens.

O elenco se entrega ao desafio de interpretar figuras que transitam entre a realidade e a ilusão. Emilio de Mello carrega o peso da perturbação de Eurico, transitando entre a angústia e a paranoia. Simone Spoladore e Christiana Ubach, como Ana e Anna, compõem bem essa duplicação de presenças femininas, trazendo sutilezas às suas atuações que enriquecem a dinâmica entre as personagens. Ainda assim, falta um desenvolvimento mais profundo que as torne mais do que meros reflexos uma da outra. Julio Adrião, como Eleno, adiciona uma camada de ameaça ao enigma e, embora sua presença pudesse ser mais bem sustentada pela narrativa, sua interação com Eurico gera tensão genuína em momentos-chave. O trio principal, apesar das limitações impostas pelo roteiro, mantém a intensidade do drama e torna algumas cenas memoráveis.

O maior problema do longa está na falta de ritmo e no roteiro que, apesar da premissa intrigante, se prolonga além do necessário. A repetição de situações e diálogos evidencia uma tentativa de reforçar a sensação de aprisionamento mental do protagonista, mas acaba apenas tornando a experiência cansativa. A revelação final, que deveria amarrar os fios soltos da trama, se mostra previsível e sem o impacto necessário para justificar a longa jornada até ali, que é bem cansativa.

Ainda que seja um filme visualmente bem trabalhado e com um conceito interessante, “Aos pedaços” não consegue transformar suas boas ideias em uma experiência verdadeiramente envolvente. A teatralidade exagerada e a narrativa arrastada fazem com que o espectador se distancie emocionalmente da história, tornando a obra mais uma demonstração técnica do que um thriller psicológico memorável. No fim, resta a impressão de que havia um grande filme escondido ali, mas que se perdeu em meio a repetições e escolhas estilísticas que impedem uma imersão mais profunda. É uma obra intrigante, mas dificilmente cativa.