“A FILHA DO PAI DELA” – Tragicomédia do controle [MFFF 2025]
Em determinado momento de A FILHA DO PAI DELA, Étienne afirma que não quer que sua vida seja como uma história ficcional nem que ele seja um personagem criado. Em contraposição, Youssef, o namorado da filha, está escrevendo um poema trágico sobre ele por conta de uma vida que apenas poderia ser entendida como uma tragédia. A relação de Étienne e Rosa oscila entre a busca pelo controle e a concessão de liberdade, entre a sensação de transcurso natural da vida e a construção estilizada de uma obra artística. Uma comédia aparentemente banal sobre a paternidade se revela mais interessante quando o parentesco entre eles estimula a criatividade estilística e a densidade dramática.
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Pai e filha não ficam distantes desde o nascimento da jovem. Étienne precisou ser a figura paterna e materna de Rosa, pois Valérie os abandonou enquanto a filha ainda era uma criança sem qualquer explicação e desapareceu pelo mundo. O homem ocultou suas emoções e não demonstrou a dor da partida da companheira, preferindo investir todas as energias nos cuidados de Rosa. O tempo passou e os protagonistas se veem em um estágio da vida em que podem se separar, o que desencadeia o reaparecimento de questões dolorosas do passado.
Na sequência de abertura, a narrativa apresenta muito bem o que poderá ser visto e aprofundado a partir dali. O diretor Erwan Le Duc experimenta em termos estéticos e sensoriais, sabendo dosar elementos distintos com um tom irônico predominante para o universo diegético. Primeiramente, essa sequência trabalha o fluxo acelerado do tempo com fins cômicos, por exemplo com a transição entre os planos conduzindo para novos acontecimentos no futuro. Assim, assistimos ao encontro repentino de Étienne e Valérie, a um protesto de rua, à fuga da polícia, a uma perseguição policial, à paixão entre os dois, à relação amorosa, à gravidez, ao nascimento de Rosa e ao abandono da mãe. No início, a trama tem um ritmo dinâmico como se não fosse parar, algo que cria um senso inusitado de comédia complementado pela sucessão de vários eventos sem diálogos e pela inserção de um trilha sonora típica de dramas carregados em contraste (ou nem tanto) com as imagens.
Após uma abertura frenética e estilizada, a encenação se torna contida e sem tantas experimentações. Nem por isso a narrativa se enfraquece, já que a combinação entre comédia e drama persiste e o estilo da trilha sonora permanece em ocasiões pontuais. O foco passa a ser a proximidade pouco usual entre pai e filha, tanto como recurso cômico por enumerar cenas incomuns para os dois estarem juntos (Étienne, por exemplo, apresenta um trabalho acadêmico para a banca avaliadora carregando uma Rosa bebê a tiracolo) quanto como metáfora para o temor da ausência representado pela partida da mãe. A princípio, a personalidade controladora do pai se destaca quando ele acompanha a filha até os corredores da escola onde estuda, visita a faculdade de Artes para onde ela irá, escolhe e avalia as colegas de quarto e busca uma casa para ele mesmo próxima à universidade. Porém, Rosa também tem uma espécie de preocupação excessiva por Étienne quando ela deixar a casa onde viveu por dezessete anos, como a conversa com a namorada do pai sobre o futuro do casal e as dúvidas se deveria mesmo se mudar.
Se os dois personagens podem se afastar e viver vidas separadamente, o filme igualmente sente a necessidade de de desenvolver arcos próprios para ambos. Em comum, a ideia de que o improviso e a falta de controle pode gerar desdobramentos absurdos e cômicos. Rosa namora Youssef, mas eles não trocam carinhos físicos porque o jovem é paciente e respeita o tempo da namorada para ganharem intimidade. A situação cria passagens curiosas, como a disposição de Youssef para um amor cortês medieval, a escrita de um poema trágico sobre a família de Rosa e a aventura de entrar na casa dela às escondidas pela janela. Já Étienne trabalha como técnico de futebol e tenta equilibrar instruções muito rígidas aos jogadores durante os treinos com paralelos entre as funções a serem exercidas em campo e sentimentos naturalmente impossíveis de serem totalmente controlados. Nahuel Pérez Biscayart e Céleste Brunnquell encarnam figuras aparentemente distintas que possuem pontos de contato, especialmente quando estão juntos para representarem uma relação paternal em crise com o passado e o futuro.
Mesmo que o centro de interesse narrativo seja a intensa união entre os protagonistas sob ameaça de uma separação natural colocada pelos rumos de suas vidas, as influências do passado são notáveis. Nenhum deles admite que o desaparecimento de Valérie os afetou de tal forma que não se permitiram falar sobre o assunto nem tentar lidar emocionalmente com ele. Quando Étienne é surpreendido pela aparição da antiga companheira em um momento inesperado, traumas não cicatrizados retornam. Ele não consegue se livrar do julgamento interno por não compreender a partida de Valérie, algo represado pela responsabilidade autoimposta de estar sempre presente para a filha. E Rosa parece ter apagado qualquer lembrança ou curiosidade sobre a própria infância, demonstrando total desinteresse pela mãe e um apego emocional pelo pai condicionado por sua presença constante. É interessante como o diretor volta estilizar as cenas ou, pelo menos, inserir elementos visuais mais chamativos quando pai e filha devem lidar com seus sentimentos em relação ao passado e ao destino de sua relação.
As escolhas formais em questão na reta final do filme podem ser simbólicas ou evocativas da ideia geral da narrativa. Étienne nem conseguiu chorar a partida da companheira, logo um close de seu rosto é fundido ao movimento das águas de um mar revolto para sugerir enfim o derramamento de lágrimas. Os sons feitos por Étienne (e até pelos avaliadores da banca) para ninar Rosa na apresentação do trabalho ecoam para uma cena posterior no futuro, demarcando que os cuidados do pai se prolongaram no tempo, inclusive de forma semelhante àquele passado. Finalmente, a busca de pai e filha pela mãe desaparecida (ou um acerto de contas com aquela época) evidencia ainda mais uma liberdade estilística em sequências que voltam a suspender os diálogos, usar um humor absurdista, embaralhar a cronologia dos acontecimentos e confundir as fronteiras entre real e imaginário. Ao fim, fica a sensação de que o controle tão desejado por Étienne não será sempre bem-sucedido e o improviso será necessário na relação com a filha, no namoro com outra mulher e na narração de sua história.
* Filme assistido durante a cobertura da 15ª edição do My French Film Festival (2025), disponível em plataformas online como a Filmicca.
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