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“LUIZ MELODIA – NO CORAÇÃO DO BRASIL” – Música no sangue e na narrativa

No Brasil, a riqueza de possibilidades para levar ao cinema as histórias de figuras da música popular é considerável. Elis Regina, Gal Costa, Cazuza, Tim Maia, Wilson Simonal, Cássia Eller, Claudinho e Buchecha, Zezé de Camargo e Luciano, entre tantos outros, já tiveram suas trajetórias adaptadas para documentários ou filmes ficcionais. O cantor, compositor e ator Luiz Carlos dos Santos, popularmente conhecido como Luiz Melodia, é o mais novo interesse do cinema brasileiro em LUIZ MELODIA – NO CORAÇÃO DO BRASIL. Uma personalidade musical recebe a atenção de uma obra que coloca suas canções no centro da narrativa, seja de forma explícita, seja de forma implícita.

(© Embaúba Filmes / Divulgação)

O documentário conta a história do artista que escreveu e cantou diversos sucessos desde os anos 1970, ao mesmo tempo que desafiou normas do mercado fonográfico brasileiro da época com sua liberdade e originalidade artística. Os altos e baixos de sua carreira são apresentados enquanto são também inseridas apresentações de canções marcantes, tendo em muitos momentos parcerias com outras personalidades renomadas da área. Desse modo, a vida e, principalmente, a carreira profissional de Luiz Melodia, são trabalhadas a partir do cenário cultural e social do país ao longo dos anos.

Grande parte das cinebiografias musicais feitas no Brasil se esforçam para narrar toda a trajetória de vida do personagem principal, inclusive a infância, o início da vida adulta e outras passagens desvinculadas de sua profissão. Diferentemente das escolhas mais comuns, a diretora Alessandra Dorgan se concentra na carreira de Luiz Melodia e deixa de lado uma abordagem linear ou pessoal sobre quem é o artista. Alguns espectadores podem sentir falta de maiores detalhes sobre a identidade como um todo do homenageado, mas fica claro que o filme tem como recorte o seu trabalho. A escolha pode ser benéfica para os próprios realizadores, que não precisam lidar com as armadilhas de tentar restringir toda uma vida aos limites de uma narrativa cinematográfica. Logo, as questões trazidas à tona dizem respeito às influências musicais no começo de sua formação, as parcerias famosas (Gal Costa e Maria Bethânia, por exemplo), as canções e shows marcantes, a relação turbulenta com as gravadoras e sua compreensão do próprio ofício.

A estrutura narrativa pode ser caracterizada como a de um documentário de montagem de arquivos. Ao longo de 75 minutos, a produção utiliza vasto material de época para percorrer a carreira artística de seu personagem e examinar um estilo específico de fazer e apresentar as canções. Então, é necessário decidir o encadeamento a ser dado àquelas imagens, as ligações possíveis entre elas e os sentidos decorrentes da passagem de um período a outro, de um registro visual a outro. A documentarista busca entrevistas dadas por Luiz Melodia, gravações de suas performances e imagens do cotidiano do país em anos anteriores. Como efeito estético e dramático, a escolha pelos materiais de arquivo, pela natureza distinta das fontes e pela sucessão dinâmica das aparições auxilia no recorte dado a uma “cinebiografia” pouco convencional (possivelmente nem seja o melhor termos para usar). Existe uma sensação de movimento que pontua cada sequência e uma energia de musicalidade que toma conta do filme como um todo. Assim, a música está tanto na dimensão temática quanto na construção formal.

Em cada material de época, há outro denominador em comum: a presença constante da própria fala de Luiz Melodia em entrevistas ou em depoimentos mais livres. Ao invés de produzir uma narração em voice over e colocar outra pessoa para costurar uma linha de raciocínio sobre os acontecimentos, Alessandra Dorgan prefere se apoiar nas reflexões, pensamentos e declarações do músico. Como consequência, o documentário se assemelha, em partes, a uma autobiografia por permitir ao próprio protagonista dar o destaque que julga mais apropriado a determinadas passagens de sua vida, omitir outros aspectos e criticar ocasiões desagradáveis para ele. Em seus comentários, percebem-se o carinho especial sentido pelo local de origem no bairro do Estácio no centro do Rio de Janeiro e a importância atribuída aos álbuns “Ébano“, “Pérola Negra” e “Mico de Circo“. Além disso, comenta sobre os desentendimentos com os produtores que tentavam impor a ele a criação de um álbum apenas com samba, o que limitaria sua criatividade em diversos ritmos e evocava o estereótipo de um músico negro associado apenas ao samba.

Dramaticamente, o roteiro da diretora e de Joaquim Castro é hábil para incorporar a ideia de que a música seria uma característica permanente na trajetória de Luiz Melodia. Mesmo que o centro narrativo esteja em seu trabalho, algumas cenas pontuais se interessam pela vida pessoal do artista e traduzem a importância da arte para sua história. Ele relembra as brincadeiras de criança em uma infância movimentada e divertida, a influência do pai, o igualmente músico Oswaldo Melodia, na sua formação, o desejo infantil de se tornar jogador de futebol e a presença da religiosidade na constituição como indivíduo. As citações a esses momentos e as próprias imagens representativas de cada um deles reforçam pela via da metáfora o quanto a música é parte fundante do homem e de seu percurso ao longo do tempo. O passado é relembrado a partir da participação de canções em seu crescimento (o pai) ou no seu desenvolvimento (a espiritualidade) e as cenas exibidas tem um senso de dinamismo evocativo de suas criações artísticas (crianças brincam na rua e uma partida de futebol é jogada no Maracanã).

Luiz Melodia – no coração do Brasil” pode ser questionado por alguns que esperavam um mergulho mais evidente sobre a vida pessoal do cantor. Indiscutivelmente, a carreira profissional tem um espaço maior e se torna o objetivo do documentário. Entretanto, seria equivocado considerar que a escolha leve à frieza ou a um distanciamento em relação ao personagem. O talento, a criatividade, a performance singular nos palcos, a importância no cenário cultural brasileiro e a marca deixada até hoje evidenciam uma narrativa que possui apelos marcantes junto ao público. E isso ocorre graças à forma como a música, em um sentido direto pelas composições apresentadas em seus shows e sob uma acepção implícita pela ideia de movimento, energia e dinâmica, é trabalhada. Um bom exemplo fica por conta da sequência em que algumas apresentações são justapostas para se escutar os sons dos instrumentos e o acompanhamento sonoro do artista sem cantar a letra. Uma sensação vibrante ultrapassa as imagens e chega à audiência.