“O SENHOR DOS ANÉIS: A GUERRA DOS ROHIRRIM” – Tolkien versão anime
Adaptar a obra literária de J. R. R. Tolkien é certamente uma tarefa hercúlea. Depois de adaptações fracassadas no fim da década de 1970, Peter Jackson se consagrou, no início dos anos 2000, ao dirigir a trilogia “O Senhor dos Anéis”, eternizada como uma das melhores aventuras fantásticas da História do Cinema. Porém, seu trabalho na trilogia “O hobbit”, lançada a partir de 2012, não obteve o mesmo êxito, decepção superada apenas pelo fracasso da série “O Senhor dos Anéis: os anéis de poder” (ao menos em suas duas primeiras temporadas), iniciada em 2022. Com esse acervo audiovisual dos textos tolkienianos, onde entra O SENHOR DOS ANÉIS: A GUERRA DOS ROHIRRIM?
Héra, filha de Helm Mão-de-Martelo, rei de Rohan, é amiga de infância de Wulf, filho de Freca, um dos lordes de Rohan. Freca pede a Helm que dê a mão de Héra em casamento a Wulf, o que é rejeitado pelo rei. Ocorrida na mesma ocasião, a morte de Freca serve de estopim para uma vingança planejada por Wulf e que culmina em uma guerra.
O filme usa a estética dos animes, o que causa estranheza se considerado o quão ocidental é o universo de Tolkien, mas não surpreende se considerado o seu diretor, Kenji Kamiyama, familiarizado com o estilo. Assim, as personagens têm olhos grandes e expressivos, expressões faciais levemente exageradas, sobrancelhas arqueadas, corpos com proporções salientes (em especial o desenho corporal curvilíneo de Héra, algo deveras comum nos animes, e o formato corpulento de Helm, ressaltando a força que justifica o seu epíteto), cabelos coloridos (a princesa, ruiva, simbolizando seu caráter selvagem enaltecido desde o início; o rei, com barbas e cabelos brancos) etc. Aliás, existe até mesmo uma batalha de kaijus. A animação é de muita qualidade, assemelhando-se a pinturas nos cenários naturais, destoando dos animais e das personagens, cujo desenho é menos realista.
A história do longa é baseada na obra de Tolkien, como mencionado. Todavia, o roteiro de Jeffrey Addiss, Will Matthews, Phoebe Gittins e Arty Papageorgiou vai além dos textos originais sem ferir o cânone, mas, por exemplo, preenchendo lacunas. A premissa é relativamente simples e consideravelmente previsível (em especial no ato final), porém isso não retira duas qualidades especiais da produção. A primeira é a essencialmente formal, dado o mencionado primor estético, o que inclui não apenas o visual, mas também a escolha do elenco. Nesse quesito, Brian Cox, cuja voz rouca e prosódia firme confirmam a pujança de Helm, é o maior destaque, mas Luca Pasqualino, como Wulf, e Gala Wise, como Héra, também fazem bons trabalhos.
A segunda qualidade reside na construção da narrativa, que ganha contornos complexos na medida em que não limita a guerra a uma batalha entre exércitos. Com nuances entre as personagens, sobretudo Héra e Wulf, o confronto se alonga e permite o desenvolvimento das suas personalidades. Mesmo pautado pela batalha bem versus mal (marca de Tolkien) e ainda que a heroína seja dotada de virtudes sobre-humanas, Wulf não é um vilão simples. Ao revés, o antagonista é racional o suficiente para planejar uma vingança, mas é passional demais para abandonar o exaurimento do plano mesmo após majoritariamente consumado. Sua origem humilde denota um receio do julgamento alheio que Héra nunca fez, o que justifica a paixão que sente por ela e da qual não consegue se livrar completamente.
É interessante perceber como, mesmo fiel ao cânone, o filme consegue modificá-lo em alguns aspectos. Mantém-se o universo fantástico (orques, mûmakil…), fortemente associado à natureza (águias, cavalos), dentro de uma narrativa centrada em temas universais (coragem, vingança etc.) e embalada por personagens cativantes e multifacetados, sempre com um tom épico. Em geral, os Easter eggs não são gratuitos, mas, pelo contrário, reforçam a narrativa e funcionam muito bem, como o Abismo de Helm e a narração voice over de Miranda Otto, que viveu Éowyn (personagem que era de Rohan) na primeira trilogia dirigida por Jackson, além do aproveitamento de melodias da mesma trilogia.
Ambicioso, porém, o filme relativiza o conservadorismo de Tolkien – coerente com o clima medievalesco de sua obra – para adotar uma protagonista jovem e feminina. Em “A guerra dos rohirrim”, as figuras femininas são fortes, como a própria Héra, que não se furta de batalha alguma (e cuja personalidade é de uma guerreira), e Olwyn (em uma das raras ocasiões em que é necessário, é a donzela-do-escudo que salva a princesa, ao invés de Fréalaf). É curioso perceber que os papéis de gênero comuns nesse tipo de ficção são suavizados, o que se extrai dos exemplos mencionados, mas também de Háma, um dos irmãos de Héra, que não demonstra a mesma aptidão para batalhar (independentemente do motivo) e aparece pela primeira vez cantando (e em timbre agudo). Existe ainda uma relativização quanto à sabedoria: para Tolkien, geralmente os mais sábios são os mais velhos (como os elfos, nada menos que imortais); aqui, o jovem Fréalaf é menosprezado por Helm, cuja ruína ocorre por acreditar em alguém mais experiente. Da mesma forma, enquanto os lordes discutem, é a jovem Héra quem aponta o caminho a ser seguido, isto é, de união. Com isso, o filme não viola a mentalidade do criador, mas atualiza um clássico literário de maneira exemplar.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.