“TESOURO” – Um protagonista escanteado
Pai e filha têm uma relação difícil desde a morte da esposa/mãe. Então, eles decidem viajar em busca de conexões com as origens familiares. Na viagem, a convivência estremece devido às discussões, às diferenças de personalidades e aos problemas individuais de ambos. Ainda assim, a jornada é transformadora e os dois se reconciliam quando se abrem para entender e aceitar mais o outro. TESOURO tem uma estrutura convencional que o faria ser como tantas outras comédias dramáticas, não fosse a marginalização dos traumas dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas.
Edek é o pai, um judeu que sobrevive ao Holocausto, deixou seu país natal (a Polônia) e o passado doloroso para trás. É um senhor de idade bem-humorado, extrovertido e charmoso. Ruth é a filha, uma jornalista que quer reconstruir as raízes da família em uma viagem pelos locais onde os familiares viveram antes da invasão nazista. Os dois passam por cidades polonesas e lidam com as sabotagens de Edek no roteiro, algumas situações cômicas, conflitos geracionais e histórias dramáticas.
A narrativa é um road movie de características cômicas e dramáticas que vai de encontro a sua premissa constantemente. O reencontro de Edek com a Polônia e com os traumas do Holocausto é um tema sério, complexo e espinhoso que não se adequa a uma abordagem humorística. Chega a ser afrontosa a maneira como a diretora Julia von Heinz trata as “sabotagens” do protagonista ao roteiro planejado por Ruth. Tudo é visto como excentricidades de um homem que parece simplesmente querer provocar a filha metódica: não viajar de trem, conseguir tudo que quer dando dinheiro às pessoas, alterar os pontos de parada das visitas e procurar um muro qualquer para ser o muro do gueto de Varsóvia. A cineasta encena cada uma desses momentos como piadas e não como sintomas dos impactos psicológicos deixados pelos nazismo. Além disso, o personagem não é representado como alguém que reprime os sofrimentos do passado. Ele teria apenas julgado que seria mais importante cantar em karaokês, fazer amizade com estranhos e ter relacionamentos casuais.
Julia von Heinz também deixa de lado o arco do pai para priorizar o percurso narrativo da filha. De modo isolado, a escolha já se revela problemática. A busca por materiais que a explicassem as razões para a violenta perseguição nazista parece sempre infantil, pois se limita a acumular e ler livros sob o ponto de vista antissemita dos alemães da época. Os conflitos próprios de Ruth surgem sem qualquer peso na narrativa, pois convivem com o humor de constrangimento feito pelo pai. A separação do ex-namorado Garth e os transtornos alimentares têm os dramas esvaziados pelos comentários de Edek sobre ser amigo de Garth e não ver sentido na dieta da filha. Quando uma sequência poderia, enfim, dar mais impacto ao sobrepeso da jornalista (comer doces de madrugada, incitar o vômito no banheiro e ter um café da manhã saudável no dia seguinte), o efeito gerado é ofensivo ou, no mínimo, questionável. Cria-se um paralelo que compara as dores de pai e filha e, em seguida, faz as memórias traumáticas de Edek serem coadjuvantes.
A desvalorização dos efeitos do Holocausto sobre os sobreviventes continua intenso quando o filme se concentra na relação entre pai e filha. Novamente o humor pelo constrangimento é usado para mostrar como a viagem pode ser desafiadora para Ruth, que precisa tolerar os comentários de Edek sobre comer apenas cereais, terminar o relacionamento com Garth por não saber ser amada ou formar uma família, ser supostamente uma jornalista rica e famosa e ouvir o apelido “jaquinha” como se fosse carinhoso. Nas cenas em que o interesse passa a ser o passado em comum entre eles, a raiz dos problemas depende dos traumas históricos por envolver a dificuldade de lidar com a morte da mãe/esposa e o afastamento emocional de Edek e Ruth. Portanto, a questão de como enfrentar as memórias e emoções das experiências no campo de concentração se torna apenas um acessório, um dispositivo de roteiro instrumentalizado para fazer a trama avançar em direção aos conflitos familiares.
Como consequência, a dinâmica paterna não precisa se desenvolver em função das vivências de Edek durante a Segunda Guerra Mundial na Polônia. Isso se reflete nas interações dos atores principais, que se mantêm no interior de uma redoma confortável criada pelas convenções da comédia dramática. As estruturas convencionais não são, necessariamente, ruins porque podem ser empregadas com eficiência para gerar reações emocionais genuínas. Não é o caso aqui. Na jornada, é possível identificar claramente os eventos que devem ser cômicos e emocionantes trabalhados apressadamente e sem sinceridade. Assim, as sequências se desenvolvem sem fluidez, criando desentendimentos, transformações e reconciliações entre os protagonistas ao bel-prazer aleatório da diretora. Em virtude disso, Stephen Fry e Lena Dunham atuam sob restrições rígidas de um gênero mal conduzido e têm pouco a fazer além de encarnarem duas caricaturas.
O auge da indiferença em relação à questão da sobrevivência em grandes catástrofes aparece quando “Tesouro” evoca diretamente aquele passado histórico. A visita ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau é filmada de forma absolutamente burocrática, não porque o filme chame a atenção para a complexidade de retratar o cenário, mas porque não revela maiores impactos em Edek. O discurso nos diálogos pode sugerir algo maior, algo que construção formal não consegue concretizar. Em termos factuais, serve somente para o protagonista corrigir informações de uma guia e, em termos estéticos, dá a impressão de ser um lugar qualquer com planos que não transmitem o senso de materialidade da tragédia. Acima de tudo, a descoberta do antigo prédio da família e de objetos pessoais é o arco que mais ocupa tempo de tela e menos proporciona alguma recompensa para o público. O reencontro com aqueles itens não convida a debates sobre a importância da memória e da identidade conservada em artigos concretos, pois se encerra como a própria obra. Deixar para trás a origem familiar enquanto a narrativa deixa de lado o tema principal como um coadjuvante menor.
Um resultado de todos os filmes que já viu.