“TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ” – Sonhos e ilusões [48 MICSP]
A sombra existe porque em algum lugar existe luz. A lógica milenar da totalidade a partir dos opostos é aplicada com delicadeza em TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ, que elabora contraposições estéticas e semânticas sem que isso resulte em maniqueísmo. Essa barreira é ultrapassada sobretudo quando são diferenciados os sonhos das ilusões.
Prabha é uma enfermeira que divide a casa onde mora, em Mumbai, com sua colega de trabalho, a jovem Anu. Enquanto aquela se surpreende ao receber um presente, provavelmente de seu marido (que viajou a trabalho e de quem não tem notícias há muito tempo), esta procura um local na cidade onde possa ter momentos a sós com o namorado.
A primeira e mais óbvia contraposição ocorre entre Prabha e Anu. Sua relação passa por alguma instabilidade, mas isso não as impede de serem amigas, quase irmãs, dado que a primeira transmite suas experiências para a segunda. A sororidade, inclusive, é um elemento periférico na trama elaborada pela diretora e roteirista Payal Kapadia, dado o papel instrumental, no roteiro, concedido à personagem Parvaty (Chhaya Kadam). Kani Kusruti dá a Prabha um semblante constantemente sério, reflexo, em parte, das suas incertezas, como o sentimento nutrido pelo dr. Manoj (Azees Nedumangad) e a situação não resolvida com o marido. Divya Prabha faz o oposto de Kusruti, dando a Anu um olhar que transita entre a ingenuidade e o atrevimento (para os padrões do seu contexto, evidentemente). Anu sabe como funciona a sociedade em que vive, mas não por isso deixa de agir conforme seus desejos. Enquanto uma colega se assusta com uma ereção, ela vê nisso motivo de piada, o que, não à toa, gera insegurança em Shiaz (Hridhu Haroon).
Essa diferenciação entre as duas se irradia com alguns dos temas que se mostram caros à narrativa. O primeiro é o tempo, uma vez que, enquanto Prabha se preocupa com o passado, Anu foca no futuro. Nos dois casos, porém, paira uma incerteza que igualmente as aflige. Elas também são opostos no amor: Prabha parece se resignar com uma enorme lacuna na sua vida a esse respeito; Anu vive um amor juvenil autêntico e voraz. Uma aceita que teve uma vida na qual não viveu; a outra rejeita ter o mesmo destino e se lança a aventuras (novamente, para os padrões da sua sociedade). É importante perceber que Kapadia não elabora uma personagem voluptuosa; Anu tem apenas curiosidades naturais que, talvez, a maioria não tem a coragem para buscar satisfazer. Em razão disso, seu amor é bastante idealizado, com cenas românticas que beiram o idílico, seja no ambiente urbano, seja no litoral.
Essa é, inclusive, uma das principais distinções imagéticas do longa, representando ainda um ponto de virada fundamental da narrativa. Do ponto de vista simbólico, mas também gráfico, a primeira (e maior) parte do filme ocorre em locais com pouca iluminação e na prevalência de cores escuras. Em Mumbai, mesmo quando a noite é agitada e impulsionada por festa, trata-se da “Cidade das Ilusões”, pois não é ali a felicidade que buscam Prabha e Anu. Quando elas vão para o litoral, surgem mais planos abertos, cenários naturais e mais luz, em detrimento da cidade escura e cheia de pessoas. A cidade grande fomentou sonhos na dupla, mas entregou ilusões. Depois de, como é verbalmente expresso, acreditar nas ilusões para não enlouquecer, o sonho se aproxima do real e a ilusão se afasta da fantasia.
* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.