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“CANINA” – Surpresa bem-vinda [26 F.RIO]

Levando em consideração a sinopse ou o trailer, CANINA poderia ser considerado um filme de terror de transformação ou deformidade corporal. Inspirado no livro “Nightbitch” de Rachel Yoder, o filme segue uma mulher que interrompeu sua carreira artística após ter um filho. Após a decisão, tornou-se uma dona de casa em tempo integral e passa longos períodos sozinha com a criança, devido às constantes viagens do marido. O estresse da nova rotina afeta sua sanidade e a faz acreditar que está se transformando em um cachorro. As aparências enganam e o que poderia ser uma obra de horror se mostra prioritariamente uma comédia dramática.

(© Searchlight Pictures / Divulgação)

Não se pode afirmar que a narrativa não tenha elementos de terror, mas são distantes das convenções clássicas do body horror como se poderia supor. O diálogo com o gênero cinematográfico se estabelece através da apresentação da protagonista e de um cotidiano limitador, assustador em sua repetição. A montagem acelerada que salta de um dia após o outro indica como ela repete os mesmos cuidados com o filho e os afazeres domésticos. Em um universo fictício, imagina o que deveria falar ou fazer para mostrar sua indignação diante de momentos frustrantes da vida, algo demonstrado pela montagem que alterna entre sua subjetividade e a realidade objetiva. Além disso, Amy Adams faz sua personagem ser tão complexa que articula na mesma figura a exaustão pelo trabalho em casa, o amor pelo filho e pelo tempo dividido com ele, a solidão decorrente de relações moldadas, necessariamente, pela maternidade, a especulação de outra vida interrompida e a preocupação com as mudanças corporais observadas.

Os sentimentos e a situação da protagonista poderiam ser atribuídos a uma imagem autoritária, violenta e intolerante do marido. Porém, o personagem de Scott McNairy não corresponde a essa caracterização que seria facilmente encarada como motivo para as frustrações e sofrimentos da esposa. Ele se mostra disposto a ajudar quando está em casa, pois brinca, dá banho e sai para passear, e compreensivo para se relacionar nas questões da vida conjugal. Olhando mais de perto, a personalidade e a postura do homem pode ter sua parcela de responsabilidade nos problemas existentes apesar de fugir de estereótipos. O marido parece ser ativo nas tarefas de pai, mas sempre pede ajuda por não conseguir fazer nada sozinho (a sequência do banho é sintomático desse fato). A compreensão empática dos dilemas da mulher se torna o comportamento de alguém que evita discussões, ir mais a fundo em conflitos complexos e se comprometimentos em ocasiões difíceis. Parece mais fácil se colocar em uma posição de apoio total à esposa até quando ela pedia indiretamente outro ponto de vista.

Apesar de não atender a certas expectativas criadas previamente, a diretora e roteirista Marielle Heller escolhe trilhar caminhos diferentes que preservam a fantasia. Há uma dimensão de mistério fantástico na aparição nas mudanças no corpo da mãe (pelos e feridas na pele), nos estranhos comportamentos da mulher (a evolução do olfato e a fúria simbolizada pelos latidos), no surgimento de cães em frente à casa e na transformação completa da personagem à noite. Nessa escolha dramática inusitada, a construção simbólica se manifesta como uma questão central para a narrativa e permite aos espectadores se debater sobre seus possíveis sentidos. Se o filme não colocasse a simbologia como um elemento essencial, as experiências sensoriais seriam mais importantes do que uma leitura específica para o recurso. Não sendo assim, a narrativa dá voltas e mais voltas sem conseguir sair da tese óbvia da liberação de impulsos primitivos sob uma forma animal devido aos conflitos da maternidade.

Marielle Heller parte dos códigos do mistério e do terror para promover uma reviravolta de estilo, que se apresenta como uma surpresa cativante e bem-sucedida. Ao invés de aprofundar a abordagem aparente, a cineasta equilibra a comédia e o drama sob o ponto de partida da transformação em um cão. O humor aparece na maneira como a mãe exercita uma criação livre para o filho, propondo para os dois agirem como animais no momento de se alimentarem, dormirem e brincarem. As situações construídas são cômicas por conta do aproveitamento do absurdo, inclusive na percepção do pai. Já o drama surge no modo como a protagonista passa por uma instabilidade maior e não oculta sua insatisfação sob máscaras de convenções sociais, como o desabafo em um jantar com amigos. O mesmo efeito aparece no uso da simbologia para enfocar as discussões do casal, que crescem gradualmente até questionamentos mais sérios para os lugares do homem e da mulher no relacionamento.

A surpresa da entrada da comédia dramática é tão bem-vinda que o subtexto simbólico fica escanteado durante certo tempo do filme sem que se sinta falta de sua presença. A abordagem naturalista de como seria a reorganização de uma família após o nascimento de um filho pode não ser original, mas tem resultados mais eficientes do que a fantasia em torno da libertação de uma face animal para a mulher. Em dado momento, “Canina” parece não saber ao certo como desenvolver e concluir o aspecto fantástico da trama. A ideia dos impulsos primitivos não encontra um lugar especial para progredir e a perspectiva mística ligada à descoberta de um livro sobre as mudanças físicas em várias culturas é um acessório sem tanto peso narrativo. E, por fim, a possibilidade de associar transformações corporais à necessidade humana básica de estar em grupo (uma família tradicional ou a união feminina) é desperdiçada pela falta de maior aproveitamento na obra. Assim, o chamariz não é o elemento mais atrativo.

*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).