“O QUARTO AO LADO” – A inevitabilidade da ternura [26 F.RIO]
No livro “O que você está enfrentando“, o autor Sigrid Nunez conta a história de uma mulher que reúne episódios dolorosos de interlocutores que interagem com ela, enquanto uma amiga com câncer terminal lhe pede um favor incomum. Então, o romance explora diferentes possibilidades de se lidar com a morte. Partindo da obra literária, O QUARTO AO LADO marca a estreia de Pedro Almodóvar na direção de longas-metragens falados em língua inglesa. Ele adapta a premissa das duas mulheres sob um contexto de relações inusitadas no estágio de vida de uma delas, abordando tanto a inevitabilidade do fim quanto a sobrevivência da ternura.
As jornalistas Ingrid e Martha foram muito amigas na juventude, mas circunstâncias da vida e do trabalho geraram um afastamento. A primeira se tornou escritora de ficção e a outra, correspondente de guerra. Anos depois se reencontram, quando Ingrid descobre que a antiga amiga tem uma doença terminal. Após uma visita ao hospital, o contato e a amizade renascem. Em meio a essa reaproximação, Martha pede a ajuda da escritora para um momento que escolheu ter: gostaria de ter a companhia de alguém no quarto ao lado quando tirasse a própria vida.
Pedro Almodóvar já produziu curtas-metragens em língua inglesa, como “A voz humana” e “Estranha forma de vida“. Nos dois casos, existiu a curiosidade de assistir ao estilo marcante do realizador fora da Espanha. Em ambos, parecia haver certo descompasso entre a história contada e a estética trabalhada, algo que não se observa em seu último trabalho. É possível que parte do público não identifique marcas estilísticas tão conhecidas, principalmente o uso de cores quentes estilizadas na direção de arte, a abordagem narrativa de um melodrama e as atuações exageradas do elenco. De fato, a intensidade das características não é a mesma de outros filmes do diretor, porém não se pode afirmar que estão ausentes. O vermelho, o amarelo e o laranja sob uma tonalidade expressiva continuam sendo cores recorrentes para retratar os cenários e os figurinos (uma contradição dramatúrgica interessante para a casa onde Martha passaria seus últimos dias), assim como o melodrama se evidencia no dilema apresentado pelo texto em relação à posição ocupada por Ingrid diante das escolhas da amiga doente.
Ingrid é apresentada como uma escritora que utiliza suas experiências pessoais para criar os livros. Na primeira sequência, ela assina exemplares em uma sessão de autógrafos sobre uma obra que aborda a relação com a morte. Mais adiante, comenta com Martha que seu próximo projeto seria uma biografia ficcionalizada de uma artista e de seus relacionamentos amorosos. Em ambos os casos, a autora escreve uma autoficção ao tentar lidar com as próprias dificuldades de aceitar a finitude da vida e por se aproximar da personagem biografada em virtude de uma espécie de triângulo amoroso de seu passado. Julianne Moore precisa, então, dar a Ingrid um peso adicional que vem do pedido da amiga: como ser a companheira de um processo de eutanásia se a morte é algo que não consegue processar muito bem? A atriz trabalha essa contradição a partir de várias perspectivas, passando pela oposição à ideia (embora não impeça o plano de seguir em frente), a dor frente à proximidade de uma perda e o companheirismo de uma amizade disponível para os últimos momentos com presença confortadora, conversas e gestos de carinho.
Já Martha é apresentada a partir das interações com Ingrid, conversas que fazem ressurgir memórias antigas. Os relatos se voltam, principalmente, para a relação conturbada com a filha por não ter sido uma mãe presente, dedicada muito mais ao trabalho de jornalista correspondente de guerra, que era também criticada por não explicar o que aconteceu com o pai. Além disso, ela rememora uma das viagens profissionais para um dos conflitos que cobriu, servindo para comentar sua escrita e a experiência de imaginar um registro ficcional de um dos eventos presenciados. O surgimento das memórias na narrativa vem com a introdução de flashbacks, que interrompem o fluxo linear e contextualizam a personagem. Tilda Swinton encarna Martha com a sensibilidade de quem precisa ser mostrada nas mais diversas contradições que perpassam uma pessoa com câncer terminal. Não há qualquer vitimização ou atribuição de passividade a alguém que se arrepende de alguns aspectos do passado, sente felicidade genuína pelo reencontro com a amiga, demonstra frustração pelo avanço da doença, mantém uma dose de humor e revela plena lucidez pela escolha tomada para sua morte.
O conhecimento de quem são as protagonistas contribui para desfrutar os momentos em que elas estão juntas. Por mais que os diálogos no hospital e na residência de Martha cumpram o papel de mostrar a retomada da amizade, é a viagem para a casa de férias que marca a dinâmica entre as personagens. As conversas podem ser pragmáticas sobre os acordos para o momento da eutanásia e as precauções de Ingrid contra suspeitas da polícia em uma investigação criminal; existenciais acerca de questões amplas como o significado de um legado, o direito ao corpo e o peso de erros do passado; e emocionais a respeito da deterioração de um corpo doente impossibilitado de uma série de atividades. Julianne Moore e Tilda Swinton não precisam de uma atuação dramaticamente carregada para demonstrar o vínculo profundo que as duas personagens constroem em uma situação extrema, já que o tom baixo de voz e os pequenos gestões cumprem esse papel. Na dinâmica entre as atrizes e personagens, é curioso como Pedro Almodóvar articula muito bem o sofrimento da partida iminente, a dedicação de Ingrid pela amiga e um humor peculiar voltado para a aceitação da morte em comentários sarcásticos.
A necessidade de enfrentar a finitude da vida ronda Ingrid em outros aspectos da trama. Ela mantém contato com Damian (interpretado por John Turturro), um ex-namorado que também se relacionou com Martha, que a ajuda a lidar com a investigação policial sobre uma eventual cumplicidade da amiga no suicídio. O homem é um estudioso que faz palestras sobre as mudanças climáticas e o atual estado comprometedor do planeta, tendo uma perspectiva catastrofista do destino da humanidade por conta dos efeitos do neoliberalismo e da extrema direita política. Ingrid reage ao discurso do colega porque, mesmo não conseguindo aceitar a morte, evita qualquer pessimismo desalentador para o futuro. E nas últimas sequências, convive, de certa maneira, com outra versão de Martha ao receber sua filha na casa da amiga. A semelhança física entre mãe e filha é impressionante e desperta sensações conflitantes. De um lado, parece reviver a convivência com quem havia partido há pouco e, de outro, coloca em questão o enfrentamento do passado pelos problemas da maternidade.
Seria possível imaginar que um filme que discute a morte e as escolhas individuais sobre o próprio corpo carregasse um tom altamente melodramático e de tons exacerbados. A seriedade e a complexidade dos temas são incontornáveis, inclusive nas referências que Pedro Almodóvar busca no cinema de Ingmar Bergman. A dimensão temática e a relação entre as protagonistas de “O quarto ao lado” dialoga com “Gritos e sussurros” e “Persona“. Em um momento específico, a inspiração no diretor sueco vai além do conteúdo das obras ao compor um quadro em que os rostos de Julianne Moore e Tilda Swinton parecem se fundir imageticamente como as faces de Liv Ullmann e Bibi Andersson. Entretanto, o cineasta espanhol encontra na sobriedade do tom, na comunhão das atrizes principais, no uso das cores e no humor singelo as possibilidades de dar à inevitabilidade do fim uma ternura igualmente inevitável para quem tanto precisa.
*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.