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“ROBÔ SELVAGEM” – Tábula rasa

Existem três leituras possíveis para o tema de ROBÔ SELVAGEM. O longa pode ser encarado como uma alegoria sobre a maternidade, uma fábula sobre pertencimento ou um conto sobre a natureza de si. A partir da protagonista, a obra segue e metáfora lockeana da tábula rasa: todos nascem sem conhecimento, como se a mente fosse uma folha em branco, e o processo de conhecimento (e seus desdobramentos, como a conduta) é resultado da experiência. Se não fossem suas contradições, o filme seria magnífico.

Roz 17134 é uma robô de última geração que fica presa em uma ilha desabitada após um naufrágio junto a outros robôs de sua espécie. Para sobreviver no local, ela passa a interagir com os animais, tornando-se a figura materna para um bebê de ganso órfão.

(© Universal Studios / Divulgação)

A ideia empirista da tábula rasa permeia a trama. O ponto de vista é o de Roz, o que é exposto até mesmo de maneira literal nos minutos iniciais. A heroína mimetiza os animais (o caranguejo para subir o penhasco, o deslocamento dos cervos por saltos…) para demonstrar que não possui conhecimento inato (ao menos para aquele ambiente). Ela não sabe sequer como funcionam as etapas de crescimento de um ganso, reagindo de maneira errática quando o ovo começa a se chocar e não entendendo a sua função para com o neonato. Obcecada por tarefas, o incidente incitante ocorre não ao chegar na ilha, mas ao compreender de criar o recém-nascido é a sua nova atribuição.

Nesse sentido, o roteiro de Chris Sanders (que também dirige o longa), elaborado a partir do best-seller de Peter Brown, se revela um pouco indeciso em relação às suas convicções concernentes à programação. Tanto Roz quanto seu novo filho subvertem suas próprias naturezas ao formarem um elo nada natural – ou, no palavreado robótico, ignorarem suas programações -, porém isso não ocorre de maneira plena. O mesmo ocorre com o outro tema abordado pelo longa, o pertencimento. O discurso adotado, na verdade, é contraditório, dada a importante decisão tomada por Bico-Vivo no segundo ato, bem como o desfecho de Roz. O argumento se torna frágil na medida em que, apesar de o texto associar o afeto ao pertencimento, essa associação é abalada nos momentos cruciais em que a natureza de cada um prevalece. No resultado, as ideias de pertencimento e programação se tornam ambíguas, como se Sanders não tivesse certeza sobre o que deve preponderar, se a programação (natureza) ou o afeto (ainda que antinatural), o que reverbera no pertencimento das personagens.

O texto tem ainda um problema quanto ao seu encerramento, pois apresenta dois finais autofágicos, e quanto à necessidade de criar uma figura vilanesca, demonstrando a dependência de um formato engessado. Por outro lado, a narrativa de aprendizado constante – decorrência da adoção do pensamento de John Locke esboçado pela via metafórica – consegue envolver muito bem o público, dado que as duas personagens principais precisam adquirir conhecimento através da prática. Roz não sabe ser mãe, Bico-Vivo não sabe ser ganso; ambos progridem nessas tarefas que se lhe atribuem. O tema da maternidade é muito melhor abordado que os outros dois (apesar da falha do final), além de gerar as melhores piadas, em especial com a participação de Cauda-Rosa e seus filhos. A transformação de Roz de uma robô insensível a uma mãe superprotetora é muito cativante.

No visual, a obra explora bem o potencial da natureza e sua riqueza de matizes. As cores também são bem usadas no corpo de Roz, traduzindo o seu sentimento em tons neon. A protagonista tem dois pontos na face para humanizá-la e seu corpo com formatos esféricos e articulações bem móveis tem a função de facilitar a sua movimentação e conceder um antropomorfismo moderado. No som, as músicas instrumentais são tocantes, com destaque para a ternura da que toca na cena do penhasco, quando Roz encontra o ovo, e a de encantamento quando o ovo se choca. Por sua vez, as músicas cantadas são empolgantes, sobretudo a que embala uma extensa sequência elíptica de ação, adaptada para o português, adicionando fascínio à aventura. Ainda no som, a dublagem de Elina de Souza é ótima ao imprimir um estilo robótico em Roz, sem torná-la entediante. O trabalho de Rodrigo Lombardi como Astuto é bom por sua voz aveludada, porém seu timbre grave não representa bem o backstory sofrido da personagem. Vicente Alvite e seu sotaque carioca tornam a versão infantil de Bico-Vivo extremamente carismática; é interessante que Gabriel Leone mantenha o timbre agudo e o leve sotaque, mas a perda inevitável da voz infantil faz com que a personagem se torne menos atrativa.

Roz é o epítome da afabilidade materna, comovendo com facilidade o espectador em momentos-chave. As lições de Cauda-Rosa de que “ninguém é programado para ser mãe” e que “paciência é o segredo” reforçam a ideia de que, nesse quesito, as mães são tábula rasa nesse ofício, aprendendo com a experiência. Se a abordagem da maternidade é excelente, o mesmo não se pode dizer dos seus dois outros eixos temáticos. Com maior solidez nos argumentos, “Robô selvagem” poderia se tornar um clássico imediato.