“OS ENFORCADOS” – Duelo familiar [26 F.RIO]
Fernando Coimbra é o diretor de “O lobo atrás da porta“, Leandra Leal é a atriz do filme anterior e de outras obras, como “O homem que copiava“, “Justiça” e vários trabalhos em novelas, e Irandhir Santos é o ator de títulos como “O animal cordial“, “O som ao redor“ e “Tatuagem“. A reunião dos três profissionais chama a atenção do público, considerando-se a força dramática do trabalho antecessor do realizador e a pluralidade de personagens vividos pelos dois atores. O chamariz em torno deles permite adentrar por uma trama que se inicia dentro de um universo de crime urbano e se transforma em um confronto entre marido e esposa com suas paranoias e traições.
O casal é formado por Valerio e Regina, ambos até então satisfeitos com a vida que levam na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro e com a reforma em andamento em sua residência. Desde a morte do pai de Valerio, um dos maiores mafiosos da cidade, eles procuram uma forma de deixar os negócios criminosos da família. Porém, as despesas aumentaram, as dívidas se avolumaram e o tio Linduarte insiste para o sobrinho assumir o comando da organização. Em uma noite, um plano é colocado em prática: matar o tio e vender sua parte do negócio. Ao fazerem isso, os protagonistas são jogados em uma onda de violência da qual não conseguem escapar.
De formas diversas, a história pode lembrar obras hollywoodianas e sugerir uma simples emulação da premissa de criminosos que tentam abandonar as práticas ilegais, mas são puxados de voltas para uma vida de ameaças e violência. A impressão não se confirma à medida que a narrativa incorpora elementos da realidade brasileira à dramaturgia de filmes de máfia: a relação entre políticos corruptos e o crime organizado de grandes cidades, as disputas territoriais entre traficantes e milicianos, a contravenção do jogo do bicho, a lavagem de dinheiro e a importância do carnaval para a sociedade. Valerio e Regina são tragados por uma espiral de perseguições, chantagens, assassinatos e roubos que dificulta o entendimento de todas as articulações daquela rede de crimes, das implicações envolvidas e da influência de cada criminoso. Gradualmente, Fernando Coimbra desloca o interesse do negócio em si para enfocar as interações, as desconfianças e os embates travados pelo casal principal.
Valerio é apresentado como um homem repleto de dúvidas e influenciado por outras pessoas até passar por um processo de transformação que o faz parecer alguém absolutamente oposto. Irandhir Santos faz o personagem depender do tio e da esposa, pois questiona a versão dada por Linduarte para a morte do pai e se sujeita às vontades de Regina. O Linduarte de Stephan Nercessian é um bandido carismático, que poderia ser responsável pelo assassinato do irmão e capaz de condicionar o sobrinho a repensar a ideia de vender sua parte do negócio. Já Regina faz o marido a satisfazer seus fetiches sexuais, embora sejam práticas controversas com base na violência, e o convence a matar o tio como um plano viável para a prosperidade da vida conjugal. Ao longo das complicações por assumir o controle das atividades ilegais, Valerio se modifica para começar a ser o senhor de sua própria vida e da organização criminosa por se livrar dos inimigos e demonstrar uma beligerância inédita na cena em que discursa na quadra da escola de samba. Em paralelo, ele passa a suspeitar da própria mulher como alguém que pode denunciá-lo para a polícia, sob os exemplos das cenas em que comparece à delegacia e entra no escritório do marido.
Regina é apresentada como uma mulher poderosa que exerce grande influência sobre Valerio e comanda a reforma de sua casa com as decisões mais questionáveis. O plano para assassinar Linduarte e o fetiche de transar com o marido vestido de ladrão exemplificam a força que possui no primeiro ato. No decorrer da narrativa, Leandra Leal coloca outras nuances à protagonista para torná-la complexa e vulnerável. As transformações vivenciadas pelo marido a perturba com as apreensões de não saber se deveria fazer um acordo com a polícia para incriminar o marido sem ser punida ou estar sob o risco de ser executada por Valerio antes de entregá-lo. Por conta disso, Regina teme diversas situações em que, na sua percepção, poderia estar em perigo, embora algumas delas seja mais imaginária do que real, como a aflição de notar que um corpo escondido nas paredes da casa seria descoberto a qualquer instante. Os conflitos fazem com que a atriz mostre a sensação de uma personagem que perdeu o domínio sobre as possibilidades de seu futuro e se sinta desvalorizada por não entender mais em que estado os negócios estão, o quanto de dinheiro já foi obtido e se as ameaças de inimigos ainda são palpáveis.
A transformação na narrativa coloca em um embate velado e indireto os dois protagonistas, mantendo ainda o estilo de uma história de crime que reorienta suas características e seu foco para a realidade do país e para oponentes até então considerados aliados. Quando as expectativas iniciais são quebradas, Fernando Coimbra apresenta vários momentos para inserir uma comédia ácida que extrai humor de formas inesperadas. Algumas piadas sarcásticas são feitas se aproveitando das eventuais semelhanças com filmes hollywoodianos e tramas policiais estadunidenses, ironizando, por exemplo, o medo de Regina de ser investigada pelo FBI, de ver seu plano aparentemente perfeito fracassar e de ne não poder considerá-lo o melhor caminho para o sucesso familiar. Outras piadas no mesmo tom são feitas graças à ótima interação entre Leandra Leal e Irene Ravache, que interpreta sua mãe como uma personagem cartomante que utiliza as “revelações” das cartas em proveito próprio. Ela também se revela cada vez mais imoral por encarar com naturalidade as ações da filha e colocar seus interesses acima de tudo.
É igualmente interessante reparar no apuro visual trabalhado por Fernando Coimbra. As escolhas formais da encenação trabalham o mistério através de diálogos estéticos com o cinema noir, algo visível no jogo contrastante entre luz e sombras na sequência em que o farol de um carro à noite ilumina a execução de um personagem por parte de Linduarte. Em outros momentos, o duelo psicológico entre Valerio e Regina se afunila para um confronto direto na iminência de acontecer, o que já começa a ser vislumbrado pela maneira como a escuridão toma conta do interior da casa. A devastação moral que coloca em risco o casamento ou os acordos criminosos do casal surge, então, por exemplo, da cena em que eles sobem as escadas por lados contrários e prosseguem afastados em um plano aberto. Os simbolismos não precisam ser profundos para indicar o conteúdo geral da produção e podem aparecer com frequência sem sugerir falta de sutileza. É o que acontece com a ideia de que os protagonistas irão se enforcar, criar sua própria ruína evidenciada pela citação inicial, pelos fetiches sexuais de Regina e pela carta correspondente lida pela cartomante.
Por mais que as referências a “O pagamento final“, “Ozark” e outras tramas policiais sob um viés de crime de máfia, “Os enforcados” se aproxima das tragédias shakespearianas. Por isso, a construção dos conflitos, a preparação dramática do embate final, o estabelecimento dos dilemas morais e o senso de ameaça generalizado para os protagonistas precisa contar com um desenvolvimento mais lento e cuidadoso. Ao longo do percurso, sequências impactantes são filmadas. sobretudo a emboscada na estrada sem cortes e com planos estáticos no final do segundo ato impacta pela forma como a encenação do perigo mortal é direta e hipnotizante. No clímax, Fernando Coimbra constrói o momento mais marcante quando, enfim, leva a sugestão do duelo familiar para a concretização evidente da violência. Na última sequência, na cozinha, as reviravoltas, a resolução agressiva dos fatos, a criação meticulosa da tensão e o poder das imagens sem tantos diálogos reforça que a ameaça maior pode estar dentro de uma família de bandidos e o interesse residir na decadência dos protagonistas.
*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.