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“PRECISAMOS FALAR” – Verborragia caricata [26 F.RIO]

PRECISAMOS FALAR parece absorver de forma literal seu título. Muitas temáticas e referências são apresentadas na narrativa, passando pela naturalização da violência, pelo ódio de classe, pelos conflitos geracionais, pelo uso crescente da tecnologia, pela polarização política e por alusões a outras produções, como o filme “Deus da carnificina” e a série brasileira “Os outros“. No conjunto extenso de ideias a serem trabalhadas, a escolha final se torna uma leitura simplificada, caricatural e sem sutilezas das contradições do tempo presente no Brasil.

(© Globo Filmes/ Divulgação)

Na trama, dois adolescentes ateiam fogo em uma mulher em situação de rua e causam a sua morte. Um terceiro presenciou o fato. Os dois primeiros são os primos Michel e Rick. O terceiro é Jefferson, irmão adotivo de Rick. O crime foi gravado por um deles, que faz uma edição para tornar o ato cruel ainda mais chocante pela falta de humanidade. Quando os casais Sandra e Paulo e Ana e Celso descobrem o que os filhos fizeram, tem início uma difícil discussão sobre como lidar com a situação. Proteger os jovens ou fazer o que moralmente correto?

Baseando-se no livro “O jantar” de Herman Koch, os diretores Rebeca Diniz e Pedro Waddington adaptam a história original de dois casais que transformam conversas amistosas durante uma refeição noturna em conflitos tensos forjados pelas aparências de civilidade. Os embates dos adultos partem inicialmente das maneiras como reagem ao assassinato da primeira sequência e buscam uma solução após a divulgação das câmeras de segurança do banco onde tudo aconteceu. Sandra está mais preocupada em salvar Michel de qualquer acusação, Paulo considera desnecessária tanta preocupação por uma mulher em situação de rua, Ana defende o respeito à lei a qualquer custo e Celso é atravessado pelo paradoxo entre a dedicação aos valores morais e o receio dos impactos à sua candidatura ao governo do estado. A dupla de cineastas não vai a fundo para explorar a moralidade duvidosa que perpassa os quatro personagens, reservando poucos momentos pontuais para demonstrar como a morte de uma pessoa parece ser um detalhe secundário.

O excesso de elementos dramáticos contamina os arcos narrativos dos adolescentes e dos adultos, sendo constantemente pulverizados por questões alheias ao problema central. Marjorie Estiano precisa dar a Sandra uma paixão exagerada por Michel, o que leva também a Alexandre Nero a criar Paulo com um senso de paranoia pouco justificável para a relação entre mãe e filho. Já Hermila Guedes e Emílio de Mello constroem Ana e Celso como um casal tanto exposto aos holofotes de uma disputa eleitoral quanto marcado pela adoção conturbada de Jefferson. No núcleo dos jovens, a grande quantidade de temas a ser trabalhada igualmente aparece: o uso doentio das novas tecnologias de vídeo por parte de Michel, interpretado por Thiago Voltolini, o preconceito racial demonstrado por ele para Jefferson, vivido por Cauê Campos, e o empréstimo de uma quantia em dinheiro para Jefferson comprar uma moto, algo que também atinge Rick, interpretado por Guilherme Cabral.

Além de inchar a composição dramática de cada personagem, os diretores exageram nos comentários sociais disparados pelo conflito principal. A sensação deixada é a de que o filme precisa expor todos os aspectos que compõem a realidade política contemporânea do Brasil. É preciso falar de eleições político-partidárias, cotas raciais nas universidades, cancelamento nas redes sociais, elitismo da classe média, uso de vídeos para filmagem de atos violentos, justiçamento através da violência, polarização entre direita e esquerda, entre outras discussões. A verborragia do roteiro não é o único elemento problemático, já que a abordagem de Pedro Waddington e Rebeca Diniz para as noções de política e de relações sociais é superficial, simplificada, repleta de chavões e pautada por um discurso típico do didatismo empobrecido de debates nas redes sociais. As sequências em que a diretora da escola de Michel liga para Paulo para falar de uma redação e a conclusão do jantar dos casais se tornam constrangedoras, devido à paralisação da trama para inserir frases e expressões de efeito ou digressões deslocadas, como “fascista”, “esquerda de iPhone” e reflexões sobre o conceito de democracia.

Dar muita atenção a uma história que se desdobra para tantos temas e possibilidades dramáticas sem um coesão afinada causa problemas para a construção visual da obra. As escolhas formais são deixadas de lado em favor de uma decupagem tão convencional que tem pouco a impactar nos conflitos em torno da resolução do que fazer após o crime. A gravação do assassinato é filmada com muletas narrativas para gerar tensão, ou seja, a câmera trêmula, os enquadramentos distorcidos de imagens pouco discerníveis e a textura amadora do vídeo. Passada a abertura, a encenação não traz grande criatividade nem trabalho estético maior para potencializar a dubiedade dos personagens ou o dilema criado. Então, tudo se resume a planos médios para estabelecer os atores no espaço ou planos fechados para destacar uma ação específica.

O terceiro ato poderia ser uma exceção ao que havia sido feito anteriormente, sobretudo por dividir o clímax nos núcleos dos jovens e dos seus pais. No entanto, as sequências do jantar, na qual se dá o confronto entre Sandra, Paulo, Ana e Celso, e da entrega do dinheiro, na qual o confronto é entre Michel, Rick e Jefferson, não são bem resolvidas. Na primeira, a explosão da discussão depende da instabilidade caricatural de Paulo causada por seu reacionarismo e por uma decupagem atrapalhada de uma eventual briga física. Na segunda, a proximidade de uma tragédia para o embate entre Michel e Jefferson não consegue preparar o crescimento da tensão nem surpreender como gostaria na resolução da cena. Por fim, o encerramento de cada núcleo tenta evocar o que “Deus da carnificina” e “Os outros” fizeram melhor e sem os comentários sociopolíticos vazios de analistas amadores.

*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).