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“UM SILÊNCIO” – Espaços em branco

Em diversos casos, a omissão pode determinar completamente a dinâmica de um relacionamento. A esquiva de opiniões e repreensões pode alimentar sentimentos ocultos, que se esgueiram por através de faixadas até um inevitável ponto de eclosão. Embora se sustente pelo dilema clássico entre a essência e o artificial, UM SILÊNCIO articula uma maneira interessante de demolir barreiras que nos afastam da verdade.

Encarregado de representar uma família vitimizada pelo sequestro de duas crianças, o advogado François Schaar tem uma vida privilegiada ao lado de sua esposa, Astrid, e do filho adotivo, Raphael. Tudo se transforma quando ela começa a pressentir que os piores segredos do marido possam estar vindo à tona.

Munido de uma câmera com poucos movimentos, a direção de Joachim Lafosse se mostra bastante segura. O cineasta imprime uma relação bastante direta com os personagens e seu isolamento, desenhando diversas formas de exclusão dentro e fora do quadro. As viagens de carro se tornam prisões particulares para as figuras que passeiam pela atmosfera de incertezas do filme. São interrogadas por seus próprios reflexos no retrovisor, oprimidos pelos enquadramentos fechados e que tentam extrair quaisquer informações. A alienação simulada se torna a única resposta.

(© Imovision / Divulgação)

O mesmo se deve à forma como a geometria da casa é explorada pelos planos. Os corredores se transformam em representantes da desolação que atinge aquele núcleo privado, separando os seus integrantes. Eles isolam uma Astrid (Emmanuelle Devos) fragilizada pela face oculta do marido renomado, desequilibrando passagens e portas da residência onde vivem. São pilares de um núcleo sólido – ao menos em sua superfície – que se apresenta de maneira desequilibrada.

No que diz respeito às percepções entre uns e outros, é interessante como a narrativa se desenvolve a partir de um senso compartilhado. Apesar de existirem, não são numerosas as sequências em que as personagens vivenciam momentos para si mesmas. Existe uma coletividade quase sempre presente em tela, que determina uma construção partilhada de quem essas figuras realmente são.

A ideia é que a nossa noção inicial daqueles rostos seja pouco a pouco desmantelada pela experiência dos demais. Joachim é bastante hábil na mescla dos pontos de vista que se misturam ao longo da montagem. Existe sempre um filtro sendo esclarecido, ditando o passo a passo da próximas sequências, nos levando a questionar de que modo a perspectiva modula a nossa própria percepção.

Isso se torna particularmente interessante no modo de se descrever as mais singelas interações entre as personagens, que em determinado ponto se tornam igualmente suspeitas. A corrupção interna de François (Daniel Auteuil) se dispersa pelo ar, contaminando aqueles que partilham dessa vida particular.

Uma inversão na temporalidade da narrativa, inclusive, é o que provoca o primeiro deslocamento da parte do espectador, logo ao início. Em termos narrativos, um recurso pouco inspirado, mas que ajuda na construção do suspense e oferece um estímulo bem definido para nos guiar do começo ao fim.

Apesar dos acertos em sua atmosfera desoladora e que nunca abre mão de indagar sobre o que se esgueira por detrás de camadas imagéticas, o longa é desbalanceado na entrega de seus levantamentos temáticos. Parece que o silêncio coroe literalmente o título, existe uma dificuldade em traduzir esses dilemas em suas devidas personagens, um tanto avulsas em dramaturgia.

Talvez isso reforce uma realização que tem se tornado cada vez mais comum no cinema contemporâneo. Uma tentativa de se esquivar do conflito por essência – ainda que nesse caso essa falência não seja tão extrema -, construindo figuras que não passam de meras presenças, com as quais se torna obtusa a tentativa de qualquer afeto.

Por mais que a natureza dessas personagens não seja exatamente atrativa, fica difícil simpatizar com a esposa protagonista, em suas tentativa de desvencilhar a imagem do marido perverso.

É um filme que confunde a lógica dos subtextos sombrios – embora boa parte das ferramentas bem se adequem a essas ideias – com uma articulação soturna e pouco investida nos próprios personagens. Sobram inúmeras questões que poderiam fomentar as relações entre eles, os segredos ainda mais internos dessas personagens, e muitas mais questões sobre a condição de nossa espécie.

No todo, “Um silêncio” entrega um experimento eficiente sobre omissões e espaços em branco. Na matéria de seus personagens, abusa um tanto da lógica de sua incompletude para não reforçar fragilidades. Sobra um interessante olhar sobre as particularidades que estamos dispostos a ignorar.