“O BASTARDO” – Muito mais do que binarismos
Dinamarca, século XVIII. Um homem possui uma série de obstáculos para prosperar em sua propriedade. As adversidades podem ser de ordem natural, em virtude das condições do solo ou da temperatura, ou de ordem social, em função das rivalidades políticas na área. O triunfo pode vir do sucesso material ou da valorização da imagem pública. Em outros sentidos, as definições de dificuldades e progresso podem não ser tão binárias como a vida poderia sugerir, algo que O BASTARDO revela pela jornada do protagonista.
Em um drama histórico de tom grandioso, o capitão e explorador dinamarquês Ludvig Kahlen tenta colonizar uma terra selvagem e aparentemente inóspita na região de Jutlândia. Ele está determinado a fundar uma colônia em nome do rei, mas os problemas logo surgem. Outras pessoas fracassaram na empreitada de explorar o local e o nobre Frederik de Schinkel utiliza todos os meios possíveis para ser o dono do território.
A princípio, o objetivo de Kahlen o faria ser visto como um sujeito mais valoroso do que de Schinkel. Ele precisa desafiar as suspeitas da corte do que um simples militar empobrecido jamais conseguiria explorar uma terra improdutiva tomada por urzes. Além disso, deve enfrentar o poder de um aristocrata que suborna, ameaça e violenta quem estiver em seu caminho ambicioso por mais riqueza e privilégio. No entanto, o protagonista possui uma moralidade tão questionável quanto o antagonista. Kahlen é movido pelo desejo de receber um título nobiliárquico e, assim, ser reconhecido pelo rei. Então, o comportamento superior com que trata os seus trabalhadores é o de um nobre, mesmo não o sendo oficialmente: dá ordens de forma arrogante, agride crianças em busca de seus interesses e entra em uma disputa mortal com de Schinckel consciente dos riscos.
Na premissa da obra, seria possível supor a existência da dualidade entre homem e natureza. Um explorador precisaria domar o ambiente para ser bem-sucedido e mostrar que o ser humano poderia usar todos os recursos naturais ao seu bel-prazer. A sensação não permanece por muito tempo, pois a natureza não é tratada somente como um empecilho ao desenvolvimento material. Em parte, as baixas temperaturas e o solo desfavorável para a maioria dos cultivos até podem ser vistos sob uma imagem negativa. Em outros momentos, os ambientes naturais passam a ser filmados na magnitude de sua extensão captada pelos planos abertos e no encantamento da iluminação natural. Diferentemente de ser sempre um elemento de oposição ao progresso econômico, representa um senso de liberdade que contrasta com o cenário de ostentação dos palácios da nobreza dinamarquesa. Isso porque a construção desses cenários, junto com os figurinos e a maquiagem, não só faz uma reconstituição de época eficiente como também expõe a opressão das elites sobre um modo de vida simples ou popular através das mesmas técnicas narrativas.
O dualismo entre natureza e sociedade no século XVIII pode ser o mais intenso em uma narrativa que flexibiliza as análises binárias. De certo modo, as características sociais daquele período histórico sugerem essa distinção profunda, sobretudo quando se observam as desigualdades entre as classes e a cultura aristocrática. Por exemplo, os servos eram tratados com base em castigos físicos violentos e de relações econômicas opressivas, camponeses passavam fome constantemente e as famílias de nobres ostentavam seu luxo material em festas opulentas e códigos de comportamento soberbo (a preocupação com os significados das perucas nas festas). No panorama descrito, Frederik de Schinkel simboliza tanto a arrogância (a mudança de sobrenome) e a ambição material (o desejo pela posse de terras custe o que custar) da nobreza e uma patologia psicológica do personagem (as reações ao ser contrariado), graças ao tipo de performance que o espectador adora odiar feito por Simon Bennebjerg. O diretor Nikolaj Arcel parte dessa oposição para novamente dar nuances a ela, já que as camadas populares têm contradições internas, como o preconceito dos colonos contra os ciganos.
Grande parte das complexidades que giram em torno de uma trama em que um homem enfrenta as adversidades da natureza ou de elites poderosas depende da caracterização de Kahlen. Mads Mikkelsen encarna uma figura que o leva a transitar constantemente por diferentes facetas, que revelam diversas contradições. Inicialmente, o capitão tem orgulho de sua carreira militar ao exibir o uniforme e hesitar em perder a condecoração de seu cargo em uma negociação por trabalho. Em seguida, demonstra estar disposto a fazer o que for necessário para receber o título de nobreza, inclusive arriscar a própria liberdade contratando criminosos para fundar uma colônia e utilizar sua experiência de combate para se livrar de inimigos. O personagem não se contenta em alternar entre as duas representações, pois mostra conhecimento específico sobre atividades agrícolas em condições hostis e tem relações contraditórias com a menina Anmai Mus, tratando-a com desdém, assumindo um papel paterno e retirando-a de seu caminho se colocar em risco seus objetivos.
Por mais que Kahlen e Mads Mikkelsen captem a atenção da câmera e do público, não se pode opor de forma binária o protagonista e os personagens coadjuvantes em termos de importância narrativa. Três figuras femininas são decisivas para a trama, mas não simplesmente por interferirem no arco dramático do explorador. Todas elas possuem suas próprias histórias e propósitos, o que demonstra que a trama não se move exclusivamente pelas ações de personagens masculinos. Anmai Mus é uma jovem vista como uma “maldição” por ser uma cigana, mas tem papel preponderante na prosperidade da terra com a espontaneidade dada por Melina Hagberg. Ann Barbara ganha cada vez mais força ao se rebelar contra as condições da servidão, permitindo a Amanda Collin superar a resignação de sua vida por uma postura de enfrentamento direto a Frederik de Schinkel. E Edel Helene desafia as convenções da época, levando Kristine Kujath Thorp a compor uma aristocrata que escolhe a pessoa que gostaria de se casar mesmo indo contra os arranjos sociais.
A proposta inicial seria acompanhar a luta de Ludvig Kahlen pelo desenvolvimento de uma propriedade aparentemente improdutiva como meio de obtenção de um título nobiliárquico. Nesse percurso, precisa enfrentar os desmandos de Frederik de Schinkel em disputas mortais de graves consequências para todos os envolvidos. Porém, nem tudo acontece como se imagina. Kahlen parece sentir vestígios dessa lição à medida que se depara com um obstáculo à sua frente e precisa refletir sobre o que fazer para superá-lo. Em cada momento assim, Mads Mikkelsen se mantém em silêncio, pensativo e com uma expressão difícil de decifrar. Seria essa cena reveladora da manutenção de seus valores elitistas? Indicativa de conflitos internos de quem se abre para outra perspectiva de mundo? Uma mistura contraditória das duas possibilidades? Quaisquer que sejam as respostas, “O bastardo” se transforma em uma obra que aborda a evolução do protagonista no sentido de perceber que o tão almejado título pode ser frustrante e incapaz de satisfazer suas necessidades emocionais.
Um resultado de todos os filmes que já viu.