“SILVIO” – A intenção aparente e a intenção velada
A ideia de SILVIO é, em tese, a de uma cinebiografia que tenta sair dos moldes tradicionais. Por “moldes tradicionais” pode-se entender aquele tipo de cinebiografia que seleciona eventos da vida do sujeito biografado e amarra a narrativa por uma cronologia que dê ao espectador uma visão panorâmica da sua vida. A intenção de fugir dessa estrutura é elogiável, porém o mesmo não ocorre com a intenção que há por trás dessa fuga.
O ano é 2001 e Patricia Abravanel, filha de Silvio Santos, acaba de ter sido resgatada de um sequestro. Desesperado na tentativa de fugir com o dinheiro do resgate, quando tudo dá errado, o sequestrador, Fernando, vai à casa do famoso apresentador para tê-lo como novo refém.
A direção de Marcelo Antunez não demonstra nenhum tipo de criatividade, não saindo do óbvio em termos de linguagem. Os flashbacks da vida de Silvio aparecem em um filtro esverdeado na fotografia, contrastando com o presente diegético (2001). Para expor o quão perturbado Fernando está, ele tem flashes em subjetividade mental que, a rigor, nada acrescentam para além de mostrar justamente essa instabilidade emocional. No primeiro exemplo, a mudança do ator e as nuances do design de produção já seriam suficientes; no segundo, além de ser um recurso clichê, o fundo preto e a pobreza cenográfica os tornam desinteressantes. Há simbolismos, é verdade (Silvio limpa o sangue de Cidinha como se quisesse apagar qualquer rastro de sua vida pessoal, a foto de Cintia sai de trás do móvel etc.), mas eles são pedestres.
O visual não é ruim para formar a atmosfera da época, a própria escolha da fonte usada no título da produção pode ter uma mensagem subliminar (é muito similar à da empresa de jogos Sega, fundada em 1960, quando Silvio elevava a sua proeminência na comunicação). No figurino, o aparecimento gradual de roupas espalhafatosas reflete bem a ascensão do apresentador até chegar à imagem pela qual ficou conhecido. Por outro lado, a maquiagem colocada em Rodrigo Faro é pouco convincente; a peruca, menos ainda. É fácil perceber que Faro é colocado em destaque, de modo que os outros intérpretes de Silvio (versões mais jovens), Vinícius Ricci e Fellipe Castro, têm pouco espaço (poucas falas, inclusive). A versão de Faro é sombria, de poucos sorrisos e muitos arrependimentos, além de uma prosódia professoral que marcou o biografado.
Não bastasse a teatralidade da mise en scène – o cenário reduzido do presente diegético não é bem aproveitado, as atuações são muitas vezes caricatas (ou mesmo ruins) e elementos cenográficos parecem feitos de papelão -, a trilha musical é absolutamente terrível. As composições soam como se tivessem saído de um filme B hollywoodiano da década de 1980, com uma obviedade gritante. O que há de pior, porém, está no roteiro de Anderson Almeida, que teve nada menos que cinco colaboradores e partiu de uma história elaborada por Carlos Augusto de Oliveira.
Sair da estrutura convencional das cinebiografias é, em princípio, uma virtude. Contudo, essa é apenas a intenção aparente do texto, e que ainda assim não se torna um atributo positivo. A primeira linha narrativa é construída por flashbacks, sendo então fragmentada e entediante, sem deixar espaço para outras personagens (a rigor, não há personagem nenhuma além do protagonista). Aqui, o filme é burocrático, tentando dar uma visão abrangente da vida de Silvio e, ao mesmo tempo, contrapor a segunda linha narrativa. Com teor político, ela é mais vertical, porém inflada com clichês que beiram o risível (sobretudo a truculência e a corrupção da polícia e a indiferença dos políticos, aparentemente um interesse do diretor, responsável por “Polícia Federal: a lei é para todos”). O roteiro perde a oportunidade de aprofundar temáticas que poderiam ser interessantes, como a religiosidade da família Abravanel, a relação de Silvio com os militares – a maior covardia do filme -, a articulação entre realidade e televisão na sua vida etc.
Ao invés disso, o foco está – e esta é a intenção velada – na suposta magnanimidade do biografado. Um talento nato desde cedo, Silvio demonstrou racionalidade e paciência sem iguais (ao menos de acordo com o longa, é claro), com uma capacidade de perdão, uma nobreza e uma empatia comparáveis apenas a, talvez, Jesus Cristo e Mahatma Gandhi. “Gente como a gente”, Silvio não tinha empregados em casa, preparando o próprio café e, tendo tempo livre, cozinhando até mesmo para o sequestrador. O que está no filme pode ter acontecido na vida real, mas não convence na ficção. Fernando (Johnnas Oliva) é humanizado de modo incompetente, pois a intenção velada de enaltecer Silvio Santos impede que o sequestrador se torne uma personagem: ele entra e sai da vida de Silvio como uma oportunidade para que este se recorde do próprio passado.
Para atenuar a surreal grandeza de caráter do protagonista, a solução – leia-se, sua falha moral – não poderia ser mais clichê: ele negligenciou a própria família, às vezes a ocultando, para obter sucesso profissional. Ainda que isso seja moralmente condenável, o filme não mostra nada além do ululante, pois se limita à perspectiva dele, como um mero arrependimento de fatos distantes que, no presente, reverberam apenas na sua consciência. Sem coragem para enfrentar temas espinhosos, como a subserviência a todos os governos (inclusive na ditadura militar) em prejuízo do papel da imprensa, a produção tenta, na verdade, ludibriar o espectador.
Como não se trata de um filme, mas de uma mera homenagem rasa, a obra não merece receber nota.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.