“CIDADE;CAMPO” – A elipse de um ao outro
Na busca por um possível elo díptico, a cidade e o campo se preservam por uma série de tensões. Carregando histórias e legados, dão continuidade a diversas existências, transformadas ao longo de sua trajetória. Choques sociais, conflitos ideológicos e organizações políticas são alguns dos aspectos que atravessam as duas dimensões. Por meio de uma dualogia de contos, CIDADE; CAMPO parte desse escopo temático para esculpir presenças errantes, que vagam por entre esses dois polos em busca de um sentido que permita a sua ressignificação.
De um lado, temos Joana, uma senhora que foge de suas terras no interior após uma terrível enchente. Ela se muda para São Paulo, onde encontra emprego como doméstica e passa a viver com a irmã, Tânia. Do outro, Flávia se vê forçada a herdar a fazenda em que cresceu após a morte de seu pai, e migra para o terreno na companhia da esposa, Mara. As protagonistas atravessam experiências que desafiam a realidade e lhes obrigam a refletir sobre a sua posição no mundo.
Ainda que exista alguma distância – para além da territorial – entre as duas tramas, é interessante observar como Juliana Rojas decompõe as relações, entre personagem e semelhante, entre persona e espaço, em uma espécie de aspectos elementares. É como se a diretora trabalhasse com um princípio de choque, um teor de descontinuidade primária entre os espaços títulos que se pretende contrariar. Surgem rimas entre as elipses de um lugar ao outro, que disputam a presença concreta das personagens e tentam se valer enquanto signos.
Exemplo disso está nas fusões que evocam a presença de Alecrim, cavalo branco com quem Joana (Fernanda Vianna) desfrutou boa parte da infância. Cavalgando, livre, por um campo que se estende para além da tela, sua representação se fragmenta em partes de si. Tem-se um senso de repetição que esgota a ânsia da protagonista. Estamos testemunhando uma memória, ou o desejo de um espírito que urge por se libertar? Seja uma coisa ou outra, são pulsões incapazes de condizer com um mundo material. Pertencem a outro plano, escondido por detrás do ponto e vírgula que grafa o título da obra.
Algo semelhante acontece na despedida entre a Joana e seu sobrinho neto, Jaime (Kalleb Oliveira). As lágrimas do garoto atingem os ramos de uma planta da varanda a dupla troca os últimos momentos. Manifesta uma menção direta às raízes da tia-avô, resguardando também um gesto de posteridade. Uma semente hipotética, germinada pela memória de um e de outro. Sentimento que imagem alguma é capaz de conter, forçadas ao exercício dos múltiplos sentidos.
Nesse viés, e conforme se poderia esperar de Rojas, reconhecida por sua proeficiência no cinema brasileiro de gênero, voltado à narrativa fantástica, essa relação com os seus símbolos autoriza o retorno a um lugar mais ingênuo, por mais brutais e soturnos sejam os seus contornos. Em determinado momento, Joana e Tânia (Andrea Marquee) realizam um teatro de sombras. Invocam vozes inventadas, esculpem personagens imaginados. Ao fundo do quadro, a câmera mira em Jaime, lentamente se aproximando do garoto. O elo entre as duas irmãs, distantes durante muito tempo, prevê um futuro possível. Depende da crença daquela criança, do que a sua inocência será capaz de legitimar e preservar.
É interessante como essa sequência se utiliza da luz de velas, conjurando o fogo que se repete, mais tarde, na travessia de Flávia e Mara. Em busca da reconexão com as suas origens e o falecido pai, Flávia recorre a uma espécie de ritual, feito à beira da floresta. Ela reúne plantas, galhos e outros materiais em um rito simbólico, nunca esclarecido, mas que estende a conexão incondicional da mulher que está ali para dividir essa nova vida.
O fogo se torna o símbolo fundamental da obra, suspenso e âmbiguo, em uma eterna conversão entre dois estados. Ainda que a narrativa urbana também se sustente pelo metafórico, aqui essa junção não traz a mesma firmeza. Embora contenha os seus momentos áureos, o segundo conto destila elementos muitas vezes avulsos, angariando uma série de ideias que nem sempre conseguem encontrar uma unidade.
A segunda história se mostra menos orgânica que a anterior, trabalhando seus conceitos por diluições simbólicas que muitas vezes sobrecarregam as possíveis discussões. Isso minimiza o potencial de uma história partindo do mesmo frescor que a diretora mantém por toda a sua filmografia. Aqui já é difícil acreditar, como a criança da primeira jornada, com essa mesma ingenuidade. Embora isso possa surgir como um contraponto interessante, pouco condiz com o excesso de signos espalhados por essa segunda metade.
Seria injusto não reconhecer, entretanto, a força que emana do casal de protagonistas, especialmente no modo como o filme constrói a sua intimidade. A câmera trafega por peles, contatos e comunhões, buscando a expiação de suas marcas, a continuidade entre cicatrizes durante o sexo, e preserva esse ideal de uma continuidade imanente graças a presença magnética das atrizes Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer.
Desse modo, “Cidade; Campo” nem sempre encontra a mesma força em sua unidade, por vezes se perdendo nas múltiplas possibilidades de se explorar as próprias elipses metafísicas. No entanto, não deixa de reforçar a presença de Juliana Rojas como um dos nomes mais interessantes do cinema brasileiro contemporâneo. Uma diretora capaz de sonhar com aquilo que observa de olhos fechados, e que crê na fantasia enquanto força libertadora dos legados mais densos de nossa história.