“FAMÍLIA” – Queria tanto ser Koreeda
Hirokazu Koreeda é um diretor que trabalha em sua filmografia a ideia de que uma família ou relações afetivas podem surgir dos encontros e das pessoas mais improváveis, inclusive colocando em xeque certezas morais rígidas. “Assunto de família“, “Pais e filhos” e “Monstros” parecem referências para FAMÍLIA, longa metragem de Izuru Narushima. Seria suficiente o desejo de construir uma narrativa com base nessa inspiração? Seria o desejo de se inspirar em Koreeda algo realizado de forma expressiva.
Todos os personagens buscam suas próprias versões de família e conexão interpessoal. Seiji é um artesão que lida com o dilema de não querer que seu filho Gaku deixa o emprego em uma grande empresa e também trabalhe com cerâmica. Gaku e a noiva Nadia enfrentam uma situação de vida ou morte após receberem uma ótima notícia. E Marcos é um nipo-brasileiro que vive em uma comunidade em um conjunto habitacional ameaçado por uma gangue local. Em dado momento, os núcleos se encontram.
É possível dividir a estrutura narrativa de Izuru Narushima em dois blocos principais. No primeiro, Seiji é o protagonista de um melodrama cujo potencial nunca é atingido em sua plenitude. Isso porque há algumas possibilidades que ficam na superfície ou se revelam tardiamente. Seria viável tratar os silêncios do personagem em contraste com um passado de pequenos delitos, aproveitando-se da escalação do ator Koji Yakusho para viver cenas em um cotidiano simples como em “Dias perfeitos“. Porém, essa dimensão é sufocada pela subtrama da relação entre pai e filho no que se refere aos obstáculos para a consolidação de uma família. Trata-se de um conflito dramaticamente envolvente, pois inclui responsabilidades do próprio Seiji e imprevistos do contexto. Apesar disso, o melodrama não é plenamente abraçado em função de uma trilha sonora envergonhada do que é e do atraso para a chegada do dilema quanto ter ou não o filho por perto.
No segundo bloco, Marcos é o protagonista de uma história de crime urbano com toques dramáticos. Ele vive em uma comunidade de nipo-brasileiros em uma área periférica do Japão, namora uma jovem do local e sofre com a violência de uma gangue. Ao tentar ajudar um amigo em apuros, Marcos se envolve com os criminosos, é perseguido, agredido e obrigado a vender drogas. O núcleo desperdiça algumas ideias interessantes, como os laços culturais entre Brasil e o Japão e o preconceito contra imigrantes e descendentes de orientais. A performance do elenco secundário chama mais atenção pelos problemas na dublagem e pela alternância aleatória entre os dois idiomas. Além disso, não se explora as especificidades presentes em um grupo de jovens cantando hap sobre suas experiências e não se decide acerca da natureza da discriminação (ódio de classe, xenofobia ou violência urbana?).
Os dois mundos eventualmente se encontram como oportunidades de união e fonte de conflitos. Ainda assim, nenhum dos efeitos se concretiza por influência de estereótipos, de uma encenação marcada pela canastrice e da simplificação de questões complexas. A possibilidade de reunir personagens variados em uma espécie de “família” é frustrada na sequência em que Seiji, Gaku e Nadia participam de uma festa no conjunto habitacional. No local, a receptividade aos recém-chegados parece ingenuamente forçada, a tolerância ao outro é simbolizada de modo infantil por bandeiras decorativas de vários países e os brasileiros são resumidos a sambistas. Já a explicação dos motivos para a violência da gangue japonesa contra os imigrantes (algo que não era necessário) é reduzida a uma perspectiva individual, fazendo com que uma trama de vingança aliene o público de problemas sociais estruturais relativos à intolerância contra figuras marginalizadas.
Izuru Narushima também deixa de dar um valor narrativo maior ao caráter transnacional da história contada. No universo diegético criado, o fio condutor é a interação de brasileiros e japoneses, Gaku faz os eventos não se concentrarem apenas no Japão porque trabalha em uma empresa que presta serviço na Argélia e os personagens falam português, japonês, inglês e francês (como Nadia não fala japonês, precisa se comunicar em inglês). Em especial, são os diferentes idiomas que são pouco trabalhados pelo diretor como elemento capaz de marcar afastamentos entre os indivíduos, já que os ruídos de comunicação são simplesmente encenados como algo a ser contido pela tradução. Quando o contato com diferenças linguísticas acontece, a narrativa não consegue propiciar o compartilhamento sensível de experiências de vida dolorosas, como se nota na cena em que Nadia conta sobre um passado marcado por guerras e perdas.
Por mais que as inspirações sejam visíveis, torna-se rápido perceber que “Família” falha na tentativa de evocar o cinema de Koreeda. A flexibilização do conceito de união familiar custa a surgir até porque a obra se dedica por mais tempo acontecimentos que dificultem a aproximação entre os personagens e destaquem as diferenças entre eles. No decorrer da trama, a presença da violência se coloca como mais um distanciamento de sua referência estilística devido à maneira como é encenada. E se a evocação a Koreeda não buscasse um diálogo tão forte, mas um ponto de partida para se construir uma visão particular sobre o tema família? Se essa for a postura, Izuru Narushima continua com um filme que é instável para caracterizar seus dois núcleos e frágil para colocá-los em embate ou cooperação.
Um resultado de todos os filmes que já viu.