“CUSTÓDIA” [FVCF/2018] – Desenterrando dramas familiares
O casal Besson se divorciou. Miriam pede na justiça a custódia total do filho para protegê-lo do pai e de seus acessos de violência. Porém, a juíza concede ao pai direito de visita. A partir daí, mãe e filho passam a ter suas vidas sob grave ameaça. O drama CUSTÓDIA aborda relacionamentos abusivos e violência doméstica, temas extremamente fortes, trabalhados através de uma narrativa cinematográfica em escala crescente de energia.
O filme não tem pressa em apresentar os elementos da história e das relações entre os personagens. Nas sequências iniciais, vemos o julgamento pela guarda do menino Julien travado entre Miriam e Antoine e como o antigo casal nunca consegue se entender. À primeira vista, há a sensação de que a mãe influencia o filho a não querer ficar um minuto sequer na companhia do pai, exagerando o comportamento violento do homem. E Antoine apenas aparenta ser um indivíduo duro, carrancudo e incapaz de demonstrar seus sentimentos. O primeiro ato serve para despertar dúvidas no espectador quanto às origens das discordâncias dentro da família. O diretor Xavier Legrand retrata a incompatibilidade entre os dois adultos ao não enquadrá-los no mesmo plano com nitidez (um está em foco enquanto o outro não, alternadamente) e quando os enquadra no mesmo plano, a juíza é filmada entre eles como um indício de sua separação.
No decorrer do longa, novas camadas são inseridas nas dinâmicas interpessoais. O segundo ato é praticamente todo preenchido com os momentos em que Antoine pode passar com seu filho. Nessa passagem da narrativa, acompanhamos um pai que também é obcecado em ter Julien por perto (por motivos completamente diferentes de um amor paterno) e sofre acessos de fúria quando suas vontades não são atendidas. Além disso, o garoto se esforça para evitar uma convivência frequente com seu pai, encontrando diferentes brechas para desafiar o autoritarismo de Antoine. Nesses instantes, o cineasta opta por utilizar closes nos personagens (especialmente de Julien para valorizar seu turbulento estado emocional) e por posicionar a câmera, em algumas sequências específicas, fora do ângulo de visão de algum acontecimento dramático – um exemplo é a discussão de Antoine com seus pais na mesa de almoço em que a câmera registra o semblante do menino e não mostra o conflito entre os adultos.
Quando caminhamos para o terceiro ato, as grandes revelações guardadas pelo roteiro são apresentadas. Algumas demonstrações de violência de Antoine, até então pontuais, se tornam constantes e numa escala ainda maior. Num primeiro momento, o personagem extravasa sua raiva abruptamente explodindo aquele sentimento acumulado de forma inesperada. Com o passar do tempo, as irrupções de fúria passam a ser sua postura permanente e a simples aparição daquele homem já provoca arrepios e um temor considerável. A força dramática do filme e o clima de tensão se intensificam nos minutos finais da projeção, numa linha ascendente muito bem dosada que consegue criar um ritmo de crescente perturbação. Duas sequências em especial ilustram bem a evolução da tensão: a festa de aniversário da irmã Joséphine que alterna, através de uma montagem em paralelo, entre um ambiente colorido e de ruídos muito intensos para outro mais escuro de uma rua mal iluminada e com poucos sons; e a sequência final de uma tentativa de embate entre Antoine e Miriam e Julien, de uma inquietação enervante pelo perigo construído em torno do que não se consegue ver (o uso da fotografia sob uma escuridão quase total amenizada apenas por pequenos fachos de luz é decisivo).
Boa parte do drama é construída também pelas ótimas atuações do jovem Thomas Gioria e de Denis Ménochet. Julien é criado como um personagem compatível com a sua idade, capaz de desafiar o pai com atos de rebeldia que fazem nos identificarmos com ele, mas também de transmitir a insegurança e a vulnerabilidade de uma criança comum. E Antoine é concebido como um homem que até tenta reprimir sua violência e seu temperamento instável, mas falha copiosamente. Todos os seus sentimentos negativos são evocados pelo ator, primeiramente, numa expressão corporal extremamente rígida e, em seguida, num conjunto de movimentos e ações brutais.
Os demais membros do elenco cumprem sua função sem destaque, mesmo aqueles que mereciam mais atenção da narrativa. Léa Drucker, vivendo a mãe Miriam, e Mathilde Auneveaux, vivendo a irmã Joséphine, não são trabalhadas pelo roteiro e, por isso, não possuem um arco próprio. Suas personagens existem apenas em função de seus parentes masculinos. Drucker apenas tem algo com que trabalhar na sequência final, na qual pode expor todo o perigo de uma vítima de abuso doméstico. Já Auneveaux simboliza outra questão problemática da obra: a irmã abre subtramas que jamais são desenvolvidas e acabam se tornado pontas soltas (por exemplo, a desaprovação de seu namoro pela família e uma possível gravidez).
Xavier Legrand consegue criar um drama pulsante em seu desfecho, alimentando-o de discussões importantes sobre a violência doméstica e seus efeitos sobre a família. Sob certo ângulo, lembra o drama russo “Sem amor” lançado esse ano no país. Porém, aqui o episódio da separação de um casal é o ponto de partida para mergulharmos numa narrativa onde as aflições também estão presentes. Dessa vez, de outra natureza.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.
Um resultado de todos os filmes que já viu.