“GREICE” – Orgulho em ser quimera
Estátuas, lendas e tesouros são geralmente um bom início para uma história. Ainda que muitos não consigam enxergar a relação, esses elementos não precisam compor tramas mirabolantes, ser narrados em lugares exóticos ou envolver enormes produções. O cearense GREICE mostra como o cinema fantástico não precisa se dissociar daquilo que é simples, propondo um delicioso projeto que nunca deixa de se encantar com as próprias transformações.
Ainda que se esgueire por entre os corredores escuros da Faculdade de Belas Artes de Portugal, Greice dos Santos nunca se esconde de quem realmente é. Talvez ela não saiba exatamente o que quer se tornar, mas a indecisão não parece ser um problema. Dividida entre a vida no exterior e as saudades de casa, ela coloca a vida em perspectiva após se envolver em um inesperado incidente. Paixões, segredos e desejos a atravessam no processo.
Sob a direção de Leornardo Mouramateus, Greice dos Santos é uma quimera em constante transformação, variando entre a fábula, a comédia de costumes e o drama de amadurecimento. Seja pelo olhar da atriz Amandyra ou da própria câmera, não existem juízos que modulem a nossa percepção; nossa protagonista não precisa se justificar para ninguém.
O filme, enquanto exercício de gênero, não precisa se justificar. Surge um jogo de reconhecimento do cinema por essência. Imagens, ilustrações, projetadas por seus autores, influenciando sua auto percepção e reconhecendo a beleza inerente a esse intercâmbio. Isso dialoga tanto com o diretor enquanto representante de sua geração quanto com as relações que se desenham dentro da tela. Greice parece surgir como espécie de centro gravitacional, definindo a trajetória daqueles que atravessam a sua vida, interferindo em outras personagens e permitindo ser influenciada por elas.
Mouramateus traz uma assinatura incrivelmente direta na forma como pensa as suas imagens. São poucos os movimentos usados para entrelaçar ações, acontecimentos e espaços, mas toda observação acaba tendo um peso. É a pequena panorâmica que apresenta a personagem logo ao começo, vinculando ela ao seu pequeno apartamento com problemas de encanamento.
É o zoom out paciente que se afasta do quadro no quarto de hotel. É a fusão entre o plano de reação de Greice e a fumaça que se espalha pelo insert da cantora portuguesa Cléa. A montagem estabelece uma relação muito clara entre as personagens, seus ambientes e signos, se deliciando com essa relação constante do filme entre a fantasia e o real.
Distante de entender esse diálogo como escapismo, é na relação com o fabular que o longa encontra a sua propulsão. O diário de Greice esconde aspectos de quem ela gostaria de ser. A máscara cosmética esconde a verdadeira feição perante um acontecimento durante a maior parte do plano. O júri que se volta ao namorado é substituído por sua observação.
São elipses que revelam presenças ansiosas por preenchê-las, que encontram nessas lacunas uma maneira de evoluir enquanto conjunto. Fala sobre uma juventude com dificuldade cada vez maior de expressar os seus desejos, talvez por um receio de fazê-lo, talvez pelo medo de reconhecer suas bases mais primordiais.
A relação com os quadros, pinturas, universos em si, é interligada com os ambientes, justapostos pela montagem de maneira orgânica. A criação é a gênese de Greice, não como uma forma de negar a si, mas sim como reconhecimento de sua constante transformação.
Do fogo ao mar, surgem ciclos de uma experimentação descomplicada, nem por isso simplificadora de uma dura realidade. O conto de nossa “Grace Kelly brasileira” – sendo o segundo o nome de sua irmã mais nova – não se justifica pela idealização, mas sim pela destreza em reconhecer o gênero e a narrativa.
Ainda fabula sobre uma juventude estática que pena em descobrir para onde caminhar, e traz até mesmo uma leitura de classe com relação a jovens privilegiados, que fantasiam outras realidades para encontrar algum senso de propósito e orgulho próprio. Mas isso surge de maneira natural em um filme que não inverte a sua forma pelo comentário como prioridade.
No todo, “Greice” é um excelente exemplo dos filmes de gênero que o cinema brasileiro vem produzindo nos últimos anos. Sem medo de ser o que é, faz de sua protagonista uma força de propagação, declarando o seu amor pelas histórias que se permitem sonhar.