“ESTRANHO CAMINHO” – Duplos e ruídos
A pandemia da COVID-19 submeteu muitos ao convívio exclusivo a própria consciência. A observação compulsória através de janelas retrocedeu uma série de contatos, reduzidos à representação digital de um e do outro pelo intermédio das telas. É desse lugar, especulativo, guiado pela fabulação iminente de trocas excluídas do real, que surge ESTRANHO CAMINHO, representante da safra recente de filmes cearenses que muitos aguardam com bastante entusiasmo.
Ainda que eu seja um erro reduzir a origem de um projeto artístico a um único objetivo, é o contexto pandêmico que obriga David a permanecer em sua cidade natal. Cineasta recém-formado, ele retorna ao Ceará para apresentar o seu primeiro longa-metragem, produzido no exterior. A chegada de um lockdown cancela voos internacionais e a sessão, forçando o rapaz a procurar o pai de quem se afastou há muitos anos.
Entre ruídos e distensões temporais, o diretor Guto Parente mistura imagens de diferentes matrizes para propor esse mesmo distanciamento. É na ausência dessa unidade imagética que o filme se filia ao cinema fantástico, povoado por duplos e reproduções que atravessam aquele universo palpável e outro escondido por detrás os olhos.
Pela materialização de suas próprias lacunas, é em suas produções que David se complementa, guiando o olhar do espectador através da experimentação, e mesmo em suas passagens mais mundanas. A própria imagem de Geraldo, o pai ressentido, é modulada pelas intervenções do filho, que busca uma forma de reconciliação. A granulação das imagens capturadas em película alentam para esse estado onírico, ainda que as performances tragam bastante palpabilidade.
Tanto Lucas Limeira quanto Carlos Francisco, em sua relação entre genitor e progenitor, imprimem uma dualidade interessante entre a casualidade e o atrito. Existe algum conforto na forma como os dois se reencontram, na maneira como a câmera se comporto dentro do apartamento de Geraldo.
Carlos mantém um calor que anseia o acolhimento do foragido, figura essa que escapa para dentro da própria mente, dos próprios filmes e narrativas. Há ali um filho que tem medo de investigar o próprio pai, receio de descobrir que nada sabe sobre ele. Ou pior, encontrar traços de si mesmo.
Aquele que gera se torna aquele que é gerado, o que subverte a lógica da reprodução para tratar desse esvaziamento de imagens, perdidas entre a essência e a artificialidade. Existe também a subversão de uma forma subordinada de se representar corpos negros, historicamente minados da capacidade de abordar as suas dores e traumas, desaparecidos no interior de caricaturas.
A relação entre os personagens centrais alimenta a frustração com o rompimento de uma continuidade artística que se volta a emancipação de figuras marginalizadas. Em determinada passagem, David se depara com caixas e mais caixas de livros de autoajuda, escritos, anos antes, pelo pai. Ele encontra um reflexo de outro autor – mesmo que mais cartesiano -, reprimido pelo passar do tempo e avesso aos princípios que parece tratar através de suas páginas. De certa forma, sua busca acaba se voltando a essa gênese criativa, mais do que para a figura paterna em carne e osso
Desse modo, o filme reafirma a paixão de Guto Parente – cineasta de filmografia bastante prolífica, em número e estilos – pela construção de imagens. Ele investiga os díspares entre a dimensão micro e macro de seus planos, brincando com essa ideia de duplicidade entre personagens e suas projeções.
No todo, surge uma sinfonia de encontros e descompassos, coordenada por afetos que buscam imagens capazes de conte-los. Por outro lado, o filme usa menos a carga dessa dispersão para desenhar a derrocada de uma relação do que para fantasiar com a possibilidade de uma reconciliação. Ainda que o processo liberte uma série de feridas, trancafiado pelo zoom in insistente da câmera ou pela invasão das luzes externas – ampliando cômodos que antes pareciam ser menores, tal como o jogo de marionetes entre um homem e seu gerador –, o filme sonha com esse reencontro por meio dessa fluidez entre os seus códigos.
Sobra um conto de espectros que faz de “Estranho caminho” uma fábula sobre laços e conexões que transcendem as leis do tempo e adulteram a finitude do homem e suas criações.