“MAMI WATA” – Abstração e pujança
Se tornou cansativa a proliferação de obras que optam por abordagens hiper-realistas. O processamento de dramas se torna totalmente mediado pela introspecção e se diminui a fabulação na forma de se registrar o mundo. Isso está longe de condenar assuntos imediatos da nossa realidade, criticar a realização de documentários – nunca condenados a tratar a vida de maneira cartesiana – ou mesmo experimentos que ousam modular o verdadeiro e a ficção. Mas se dirige ao descompasso cada vez menor entre certas imagens e aquilo que ambicionam representar. Enriquecido por sua própria mitologia, aplicada a um interessante exercício de melodrama, o nigeriano MAMI WATA se distancia dessa lógica que prioriza, em muitos casos, o comentário em detrimento da forma.
Em uma pacata aldeia africana, Mama Efe recebe parte da colheita mensal feita por seus membros. Ela se coloca como intermediária entre os seus seguidores e a deusa Mami Wata, reconhecida como deusa das águas pela tribo Iyi. Quando uma das filhas da líder, Prisca, começa a duvidar das relações hierárquicas, uma série de tensões começam a surgir, e a crença que mantém todos unidos passa a entrar em colapso.
Restrito a poucos ambientes, todos registrados com poucas fontes luminosas e em preto e branco, o filme emula um grau bastante expressionista na direção de C.J “Fiery” Obasi. Ainda que aborde uma série de questões com raízes coloniais e de origem sociopolítica, o diretor não tem medo de incorporar a abstração aos seus planos, filiado à dimensão metafísica a que se refere desde o letreiro de abertura. A escuridão que permeia as imagens representa esse lugar de trânsito em que os personagens se encontram, de frente com as mudanças eminentes de um sistema prestes a ser suspenso.
A teatralidade com a qual as cenas são registradas transfere o subtexto para esse campo da representação, de maneira quase ritualística, se pensarmos na natureza e na cultura em que o filme se baseia. A nitidez dos planos filmados em digital se atenta às pinturas corporais das personagens, destacando os seus detalhes pelo contraste com as noites soturnas. A câmera tateia os rostos, desenhando as suas marcas e cicatrizes, calorosa apesar do sentimento de derrocada que se aproxima.
Especialmente no início, existe um desapego em relação a uma trama mais objetiva, ainda que explore os primeiros indícios dos desenlances entre filha e mãe, e o declínio da fé depositada sobre a deusa da água. É um momento de se estabelecer a linguagem pretendida, especialmente nesse lugar dos planos mais fechados, que reduzem os espaços para dar luz ao drama dessas personagens, explorar as suas expressões e aquilo que internalizam para tentar manter alguma estabilidade.
É curioso como o filme vai se sentindo cada vez mais a vontade para experimentar visualmente, explorando imagens que parecem ter sido obtidas com configurações de câmera diversas. As ondas do mar são capturadas com uma velocidade de quadros por segundo – o que implica na maneira como o movimento é percebido perante o olhar – diferente daquela dedicada aos diálogos, por exemplo. São técnicas, simples, que intensificam a relação do espectador com esses signos naturais.
A fluidez da água sugere a ânsia por renovação. Seu registro esvoaçado aponta para a indefinição dessa chegada. Todos aguardam por uma espécie de milagre, um salvador que Prisca (Evelyne Ily) não acredita se esconder dentro de si mesma. Mas a verdadeira mudança está na vinda de um perigoso grupo rebelde, que propõe uma nova maneira de se admnistrar a aldeia, regida pela violência e pelo caos. A dualidade de alguns dos representantes grupo flerta com esse senso entre símbolo e realidade, que perpassa o filme como um todo.
Apesar desse desprendimento, o conflito em si, seja em sua encenação ou na justificativa textual, acaba deixado um pouco de lado. Não se torna simplório pela concisão técnica, mas pela incapacidade de honrar a complexidade que tanto almeja. Os argumentos são planos, não havendo dificuldade para o espectador escolher um lado de preferência. Nesse sentido, acaba inibindo a participação de quem o assiste.
No conjunto, entretanto, é a abstração visual proposta por “Mami wata” que eleva a experiência, navegando por esse lugar entre a palpabilidade de raízes culturais e a subjetividade de seus símbolos e interpretações.