“ARÁBIA” – Estradas, vidas e classe
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA.
No cinema indie norte-americano, road movie é um tipo de filme em que o protagonista viaja de seu ponto original para um destino específico em busca de alguém ou algo. Na narrativa, a chegada ao ponto final é apenas uma justificativa para o que realmente importa: as experiências ao longo do caminho que modificam o personagem. ARÁBIA lembra a mesma estrutura, mas a viagem é distinta e se organiza dentro da realidade brasileira ao invés de importar um modelo alheio. Ao longo do trajeto, a sociedade brasileira e a classe trabalhadora estão no radar do que deve ser conhecido e problematizado.
O caminho se inicia em Ouro Preto e o primeiro espectador a acompanhá-lo é André, um jovem que mora com seu irmão mais novo próximo a uma fábrica. Em boa parte de seu dia, anda de bicicleta pelas ruas da cidade até o momento em que a tia pede sua ajuda após um acidente com um trabalhador local. Por acaso, André encontra o diário desse metalúrgico e começa a ler as memórias de um homem que vivenciou diversas dificuldades em uma sociedade extremamente desigual.
João Dumans e Affonso Uchoa contam a história de Cristiano através da junção entre a narração em voice over do texto escrito pelo próprio protagonista e as imagens de sua trajetória por várias regiões de Minas Gerais e tipos diferentes de trabalho. Os dois registros apresentam um homem comum cercado por acontecimentos igualmente comuns no Brasil para indivíduos marginalizados socialmente. Aristides de Sousa encarna um sujeito que demonstra no tom de voz, no olhar perdido e na face castigada pelo tempo os efeitos das agruras em sua vida. As dificuldades experimentadas foram tantas que, mesmo os momentos de descanso ou lazer, não parecem ter a dose completa de prazer que poderiam. Curiosamente, nas primeiras páginas do diário, ele comenta que não acha ter nada muito relevante para contar sobre si.
Ledo engano. Cristiano narra experiências importantes por si só e também pelos vínculos amplos que proporcionam. Há muito já deixamos para trás a crença de que narrativas biográficas apenas poderiam ser feitas sobre “grandes personagens”, grandes lideranças políticas ou militares ou figuras famosas. As situações cotidianas guardam uma autenticidade e uma pureza que têm pouca comparação com eventos grandiosos e supostamente superiores. É verdade que grande parte do que se acompanha são momentos de carência e exploração. Em suas andanças, Cristiano conhece Barreto, um senhor amado por alguns e odiados por outros por ter sido um sindicalista importante. O protagonista deixa uma propriedade onde colhia frutas porque passou três meses sem salário e passa as noites em florestas, lojas abandonadas e camas improvisadas. Ele vive saltando de um serviço temporário a outro, por exemplo a colheita de uma fazenda, a reforma de um prostíbulo e o transporte de cargas. Partindo de suas próprias privações, a jornada individual representa as dificuldades de todo um coletivo.
Em seus movimentos à procura de uma nova ocupação que lhe dê sustento, convive com outros personagens igualmente afetados pelas desigualdades sociais e por uma realidade de ausência material. Quando pode descansar, ele canta, toca violão e fuma com os colegas, momentos estes que retiram do espectador uma reação de encantamento, sem condescendência, a partir do companheirismo estabelecido entre eles. Em outro tempo livre, conversa com o motorista do caminhão de carga sobre materiais mais fáceis ou difíceis de transportar. E em uma das fábricas onde trabalha, conhece e se apaixona por Ana, admirando-a também por ser alguém que sabe se expressar muito bem. Porém, essas passagens não são romantizadas, já que os amor lida com obstáculos muito palpáveis de uma vida marginalizada e a relação dos colegas é marcada por lacunas, interrupções e afastamentos. Ao todo, Cristiano se torna uma metonímia para a condição do trabalhador precarizado no Brasil, conseguindo fazer sua trajetória ser exemplar de tantas outras similares por todas as cidades brasileiras.
“Parecia ser uma vida nova”, diz o protagonista em certa passagem. A sensação também acompanha os espectadores que veem Cristiano recomeçar sua existência continuamente. Todo sinal de que pode se estabelecer em determinado local e com determinado trabalho é efêmero e logo revela a necessidade de seguir adiante, buscar outra possibilidade e chegar a mais um pequeno desfecho semelhante. A confusão entre o que pode ser uma vida consolidada e uma esperança não realizada se encontra com a escolha da dupla de cineastas de posicionar a narrativa na fronteira entre o ficcional e o documental. Em cena, personagens vividos por atores não profissionais (possivelmente, apresentando para a câmera o que são e o que vivem em suas rotinas) contracenam com personagens interpretados por atores profissionais. As sequências incorporam na sua encenação a mesma dinâmica, já que um diálogo entre uma enfermeira e uma mulher doente e o trabalho dentro da fábrica exemplificam a dramatização do fluxo do cotidiano.
A aproximação entre ficcional e documental não é a única a dar uma abordagem particular à narrativa. Affonso Uchoa e João Dumans também fazem realismo e lirismo dialogarem pelo modo como trabalham os cenários e o desenho sonoro. Em muitas cenas, a câmera segue os personagens em planos com poucos cortes e explora o olhar sobre as locações sem tantas intervenções na imagem. No conjunto da obra, enquadramentos, movimentação da câmera e relação entre personagens e ambientes evocam uma sensação de que a vida real se descortina tal como é. Simultaneamente, a construção sonora transita entre o realismo dos sons diegéticos e a poesia decorrente de canções muito expressivas da cultura brasileira. A trilha sonora possui títulos de estilos variados, como “Marina” de Dorival Caymmi, “Homem na estrada” de Racionais MC’s e “Três apitos” de Maria Bethânia., que traduzem metaforicamente a jornada de um homem sem liberdade plena e sofrimentos ainda a serem reconhecidos.
Inicialmente, Cristiano duvidava da possibilidade de seu diário conter algo interessante. Nas últimas páginas, o valor de suas memórias e experiências chega na sequência em que os ruídos do ambiente são suspensos e a encenação sintetiza sua grande descoberta: “Queria puxar meus colegas pelo braço e dizer para eles que acordei, que enganaram a gente a vida toda”. A frase anterior coloca em evidência o mito da meritocracia e uma existência frágil baseada apenas no trabalho. Se em breves intervalos de tempo parece haver sempre uma vida se encerrando e outra se iniciando, o resultado pode não ser dos melhores. Uma vida completa pode estar sendo retirada de um indivíduo com promessas de que ele pode tudo quando se entrega a um trabalho precário, marginalizado e explorado. Ou melhor, como “Arábia” diz, toda uma classe social é colocada nessa condição pelas contradições do capitalismo.
Um resultado de todos os filmes que já viu.