“LANCELOT DO LAGO” – O naturalismo, o minimalismo e o moralismo de Bresson
As crônicas do valoroso Rei Arthur e seus cavaleiros da távola redonda podem ser encaradas a partir de duas óticas. A primeira é pela História: ele seria uma figura real que teria comandado a Grã-Bretanha contra a invasão dos saxões no início da Alta Idade Média. A segunda é pela fantasia: ele seria um rei em busca da magia proporcionada pelo Santo Graal. Atribui-se a Godofredo de Monmouth (autor de “Historia Regum Britanniae”, do início do séxulo XII) a inserção dos elementos fantásticos, como o mago Merlin, nas lendas arturianas. LANCELOT DO LAGO faz uma adaptação naturalista – e moralista – da tradição pós-Godofredo.
Atormentado por trair o Rei Arthur em razão de seu romance com Guinevere, a Rainha, Lancelot acredita que a morte dos cavaleiros durante a busca inexitosa pelo Santo Graal é uma punição divina. Com isso, ele decide romper com a amada. Enquanto alguns companheiros, como Gauvain, são leais a Lancelot, outros, como Mordred, o querem morto.
É difícil imaginar que um cineasta como Robert Bresson faria uma adaptação das lendas arturianas com premissas fantásticas. Merlin é mencionado, o Santo Graal supostamente daria poderes sobrenaturais. Em princípio, nada disso faria sentido em uma obra bressoniana. Porém, os aspectos que marcam a filmografia de Bresson estão fartamente presentes, a começar pela escalação de um elenco de atores não profissionais, cujas atuações são sempre suaves o suficiente para não transparecer emoções excessivas. As emoções existem, mas as atuações são bastante comedidas, o que dá, na visão do diretor, maior autenticidade ao que eles transmitem. Essa escolha de Bresson, feita também em “Pickpocket” (dentre outros), pode causar estranheza nos dias de hoje, mas é exemplo da sua influência na nouvelle vague.
Outro fator que se destaca nos filmes de Bresson é o design de som chamativo, preferindo a trilha intradiegética à extradiegética. Aqui, são poucas as músicas extradiegéticas, ao passo que os ruídos diegéticos têm bastante espaço, como as flechas atiradas, os pássaros na floresta e, principalmente, a armadura dos cavaleiros (que quase chega a ser, propositalmente, incômoda), criando uma atmosfera naturalista. Quando há música, ela tem estilo medievalesco, com percussão e gaita de foles, como na cena do torneio, cuja repetição de atos faz parte do ritmo lento (que, porém, é compensado pela duração curta). Como em seus outros filmes, a mise en scène de Bresson é minimalista, evitando movimentos de câmera que chamem a atenção para a direção. Assim, por exemplo, quando Lancelot (Luc Simon) e Guinevere (Laura Duke Condominas) se encontram a sós, apesar da paixão, ele, ao invés de beijá-la, ajoelha-se e aproxima a barra de seu vestido do próprio rosto, um gesto de reverência que denota tanto uma emoção reprimida quanto o próprio minimalismo pelo qual o diretor é lembrado.
“Lancelot do lago” é mais uma obra bressoniana que se baseia na intertextualidade, tal como “O dinheiro”, que adapta Tolstói. A narrativa é simples, com um backstory de culpa e punição, uma trama de remorso e reflexão e um romance no meio disso. A simplicidade narrativa, porém, pode eclipsar as duas principais temáticas do longa. A primeira é uma das principais características dos seus filmes, que é o moralismo religioso (que justifica seu rótulo de jansenista). Para Lancelot, “autocontrole é força” – que é “muitas vezes confundida com fraqueza”, segundo o leal deuteragonista Gauvain (Humbert Balsan) -; o herói pede a Deus para que o livre da tentação (de ceder ao amor que sente por Guinevere). Assim como em “Diário de um pároco de aldeia” e “O processo de Joana d’Arc”, marcam presença assuntos como fé, redenção e sofrimento (vale lembrar que Bresson era católico). A lenda arturiana incorpora o moralismo quando considerados a constante autocensura do protagonista e o medo da punição divina – além do desfecho, é claro. A segunda temática, que é secundária, mas fundamental para o avanço narrativo, tem conteúdo político: Mordred (Patrick Bernhard) é desafeto de Lancelot porque sabe do prestígio que ele ostenta perante Arthur (Vladimir Antolek-Oresek), o que o vilão não consegue aceitar.
O cenário de fé, impulsionado por atos pecaminosos, permite que Bresson ancore seu filme na realidade, usando o surreal como mero ponto de partida praticamente irrelevante (a ponto de ser substituído por outro pretexto qualquer sem prejuízo). Pouco importa se Merlin era realmente um mago ou se o Santo Graal concedia poderes sobrenaturais, o que importa é que Lancelot praticou atos reprováveis que justificam o seu sofrimento, quiçá o sofrimento alheio enquanto castigo divino. “Lancelot do lago” não é o filme mais conhecido do cineasta e provavelmente não é o melhor, mas demonstra muito bem as características pelas quais ficou conhecido e influenciou gerações posteriores.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.