“GUERRA CIVIL” – Um prognóstico
Com um roteiro melhor, GUERRA CIVIL mudaria de patamar em termos de qualidade. O filme é excelente e consegue ser marcante em algumas cenas, mas o nível da substância não alcança o da forma. Para um momento em que a política mundial está sendo afetada por conflitos internos e externos, geralmente motivados por radicalismos ideológicos, uma elipse, mesmo elucidativa, talvez não baste.
Em um futuro no qual os EUA vivem uma guerra secessionista, no qual o Presidente está sendo ameaçado pelas Forças Ocidentais (o agrupamento separatista armado), os jornalistas Lee e Joe decidem ir a Washington para elaborar uma matéria sobre os últimos momentos do enfraquecido líder nacional. À dupla se juntam dois extremos: o experiente, mas já idoso, Sammy, e a iniciante Jessie. A receita tem tudo para dar errado.
“Guerra civil” não é propriamente sobre política, é sobre a barbárie que a política, naquele mundo distópico, se tornou. Sem aprofundar nos meandros da política, Alex Garland se apega à elipse e faz mais um prognóstico abrangente (pessimista, é claro) do que uma crítica contundente. Ao invés de dizer “isso está errado”, o que diz é “se tudo continuar como está, o confronto bélico pode ser o futuro”. Existem, é verdade, flashes de comentários políticos, como quando Sammy afirma que, quando DC cair, os aliados voltam a brigar entre si (como se a aliança fosse ocasional, e as clivagens, inevitáveis). Porém, o foco de Garland não está nesse viés, tampouco na ação que normalmente se espera de um filme de guerra (vide o título do longa). Trata-se, na verdade, de um road movie, fugindo da adrenalina incessante que seria a opção de outro diretor.
Isso não significa, contudo, que não há ação. Inspirando-se em filmes como “Assalto à 13ª DP” e “Fuga de Nova York”, de John Carpenter, há muita adrenalina na produção. Garland elabora uma obra equilibrada, com ritmo equilibrado e pausas que representam um respiro necessário para a ação, evitando um sensacionalismo barato pautado meramente na estética. É com isso que surgem cenas de tensão, fundamentadas na imprevisibilidade humana (sobretudo naquelas circunstâncias), como a que envolve Wyatt e a do posto, sem prejuízo de momentos que se aproximam do contemplativo, destacando-se a cena da loja e a maravilhosa cena da queimada. Garland é provocativo, sugerindo contradições resultantes do absurdismo da guerra, como o cenário natalino em contexto nada festivo e, novamente, a cena da queimada. A combinação de “Breakers roar” (de Sturgill Simpson) com as imagens tristes, mas encantadoras (o alaranjado das faíscas, as chamas ao fundo levemente sobrepostas pela fumaça), gera uma atmosfera inebriante.
Há grande preocupação com o naturalismo. Graficamente, a construção de cenários reais, as coreografias bem executadas e o uso de uma câmera (DJI Ronin 4D) coerente com a proposta criam uma imersão que é superada apenas pelo brilhante design de som. A mixagem, alternando entre sons intra e extradiegéticos, exerce função essencial para conduzir o espectador às emoções planejadas. Preponderam duas ferramentas. Pelo contraste (que não se reduz ao som, apresentando-se também nos cenários bucólicos, como a base das Forças Ocidentais, um paradoxo evidente entre tranquilidade e conflito), por exemplo, risos e tiros são substituídos por um hip hop relativamente alegre (“Say no go”, de De La Soul). A interrupção brusca ocorre do intenso ao minimalista (o caos sonoro da turba do início, com música extradiegética e ruídos intradiegéticos, cessado depois de uma explosão, após a qual subsistem apenas sons dos flashes das câmeras), mas também pela via contrária (a transição da primeira noite de Jessie na estrada para a agitada cena seguinte). Quanto ao naturalismo, os ruídos de tiros não são exclusivos da pós-produção: as armas tinham balas de festim, com som alto o suficiente para que o elenco reagisse espontaneamente ao ouvi-las, mesmo usando protetores de ouvido.
Foi o que fez Kirsten Dunst, em um papel construído em camadas grossas de sentimentos enterrados (mas vivos). O semblante de Lee é de alguém impassível; seu discurso, implacável (“no banco de trás temos um bebê e um velhote”). Porém, isso esconde os traumas de uma jornalista (vislumbrados na cena da banheira) cuja expressão conformista quanto ao passado não elide um intento de proteger o futuro. Do contrário, ela teria abandonado o trabalho e não teria o instinto quase materno em relação a Jessie. Interpretada por Cailee Spaeny, Jessie é a personagem responsável pela identificação do espectador, e a atuação da atriz é de alto nível, mas a personagem em si não encanta. Essa, inclusive, é uma das fragilidades do roteiro: exceto por Lee, as personagens não são complexas. Joe (Wagner Moura) é praticamente reduzido a um alívio cômico (pulando corda com crianças, colocando o chapéu na loja…). Sammy (Stephen McKinley Henderson) tem algumas falas interessantes (principalmente ao contrapor a sua visão da cidade tranquila à de Lee), mas seu arco é bem previsível.
O foco do filme está no caos (e nisso ele é impecável), então os antecedentes da guerra são ignorados (o que se torna incoerente na cena da cidade tranquila, em que a isenção é censurada). A atividade jornalística, enquanto prática, é objeto de reflexão (seus perigos, suas dificuldades etc.). Todavia, pensar mais sobre a sua importância poderia agregar ao texto. De todo modo, com atuações formidáveis – incluindo uma ótima participação especial de Jesse Plemons – e uma estética incrível, “Guerra civil” é uma produção impactante. Ela seria ainda mais impactante com um roteiro melhor.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.