“UMA FAMÍLIA FELIZ” – Véus da dramaturgia
Manter as aparências nem sempre é uma tarefa fácil. São muitas as pressões que desafiam nossas zonas de conforto, tensionando rótulos, relações e morais. Elegendo a maternidade como papel de discussão, UMA FAMÍLIA FELIZ questiona a artificialidade de suas representações e constrói um suspense muito eficiente.
Pressionada pelo nascimento de seu recém-nascido, Lucas, Eva leva uma vida tranquila ao lado do marido e das duas filhas gêmeas. Ela constrói bonecos reborn no ateliê de sua casa, e se esforça para ser a melhor mãe possível. Quando uma série de suspeitas começam a sugerir que esteja agredindo as crianças, Eva precisa lutar para reestabelecer a ordem em sua vida.
Dirigido por José Eduardo Belmonte, chama a atenção como o projeto não reproduz uma estética afetada pela autoconsciência de muitas obras atuais. Da sequência de abertura aos planos mais simbólicos, a direção prioriza a construção do melodrama, investindo na dramaturgia em sua conexão mais primordial com o conflito e a maneira como ele se instaura no espaço.
Seja o último literal ou psíquico, isso fortalece especialmente a forma como o roteiro é decupado, buscando o artesanato nas múltiplas maneiras de se enquadrar as personagens, suas angústias e as arestas que enclausuram esse conjunto. Da simetria inicial que é gradativamente desfeita, invadida pelo desequilibro, às linhas geométricas que separam personagens e aprisionam a protagonista, tudo atenta para uma plasticidade imersiva e exemplificadora de uma grande admiração pelo cinema de gênero.
Distante dos exemplares que utilizam essas ferramentas para expor a própria inteligência, expondo o limite de seus signos enquanto meros significantes, é com alívio testemunhar que aqui os usos corroboram para a experiência em si. Ainda que o longa carregue consigo uma evidente carga subtextual, especialmente na maneira como destrincha os papéis dentro do núcleo familiar, o primor da busca encontra espaço para brilhar.
Complementar às composições geométricas de Belmonte – e que mesmo assim nunca beiram a uma admiração indulgente, entregando enquadramentos contidos em sua própria, e bem administrada, simplicidade – o ritmo entregue pelo roteiro do escritor Raphael Montes encontra uma cadência magistral na maneira como insere novas caracterizações. Embora opte pelo lado de uma inflamação, a forma como a narrativa adiciona aspectos que induzem à demolição de pressupostos anteriormente construídos permite a renovação constante a cada novo ato.
Ainda que alguns dos acontecimentos, em si, beirem ao absurdo, existe um magnetismo inerente a esse desafio de descrença. Existe aí mais uma das lealdades do filme com relação ao cinema de gênero, capaz de subordinar uma esfera lógica aos ordenamentos internos da ficção. E nem por isso, indo além, se encontra nisso uma operação isolada de tema e argumento. A esse processo de submissão dramatúrgica, estão alinhadas as falências dessa estrutura familiar, atravessadas pela dúvida e pela difícil manutenção de padrões morais.
Essa chave da imoralidade – apesar de nesse sentido o filme permanecer mais tímido – é bem trabalhada pelas performances de Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini, comprometidos com a honestidade do conjunto em sua forma novelesca de agir. Explica-se essa atribuição pela capacidade de se desvencilharem de um certo vício pelo realismo, sem que se renda a alucinação generalizada de viradas bruscas. As explosões e válvulas de escape nem sempre condizem com a lógica, mas relembram mais uma vez a natureza arquetípica daquele conjunto de personalidades, além de oferecer uma margem bem aproveitada de criação ao elenco.
São positivos, por exemplo, os planos que se rendem à condução facial da dupla de atores, nem sempre subjugando os mesmos às necessidades mais formais do quadro, e sim se permitindo guiar por eles, em seus tiques e expressões particulares e que agregam à palpabilidade daquelas personas falsas. Descrição essa que pode até parecer contraditória, mas que no escopo linguístico do projeto se harmonizam com o seu jogo entre a superfície distante e fantasiada, e a verdade crua prestes a eclodir.
Apesar de um pouco abrupta, a revelação final aponta novamente para esse espécie de esgotamento de uma narrativa que preza pela primazia do suspense em primeiro lugar. Tem-se uma revelação explosiva e que em muito dialoga com a jornada de uma mulher aprisionada entre expectativas imagéticas e realidades brutas, instigada a desdobrar toda a moral – mesmo que ainda tentando provar o que parece ser certo – tal como a experiência de um fazer cinematográfico que busca superar qualquer obrigação ou urgência capaz de limitar a arte em seu mais puro acontecer.
Desse modo, “Uma família feliz” traz frescor para o audiovisual de um país marcado pela coragem e falta de vergonha do novelesco e melodramático enquanto celebração do fazer artístico. Em uma era de obras marcadas por grandes submissões de utilidade, o suspense não abandona o discurso temático, mas ao colocá-lo em função da forma e da experiência, consegue suscitar reflexões mais duradouras.