“O ENIGMA DE KASPAR HAUSER” – Tábula Rasa
Não é possível dissociar a construção de uma percepção de mundo das imagens que dele irrompem. A maneira como o exterior chega até nós acaba por modelar nosso próprio diálogo com tudo que nos reveste, construindo maneiras de se viver e socializar. Trazendo o Mito de Platão como inspiração, essa discussão é o cerne de O ENIGMA DE KASPAR HAUSER, filme que investiga os interstícios entre a alienação e a libertação humana.
Abandonado pelo homem que o criou em meio a uma pequena cidade europeia, Kaspar Hauser carrega um intrínseco mistério consigo. Incapaz de se comunicar como os indivíduos daquela sociedade, ele não sabe nada sobre as suas origens. Desconhece ideais de sociedade e parece dissociado de conceitos como o medo e a própria maldade. Tudo muda quando ele é adotado por um aristocrata e sua criação coloca suas noções em perspectiva.
Dirigido pelo alemão Werner Herzog, cineasta reconhecido por explorar – e usualmente por uma olhar câmera naturalista, seja na forma artesã de inserir o fictício na realidade, ou pela filiação direta ao documentário – a relação entre o homem a natureza, chama a atenção a forma como o projeto insere o protagonista como uma potência de demolição dentro de um microcosmos controlado. Isso não se dá necessariamente por uma necessidade dramatúrgica, antecipando a iminência de um grande conflito ou a encenação exacerbada dos entraves entre a razão e o sensorial. Mas, pelo contrário, opera como uma espécie de investigação científica a se desenvolver em um determinado habitat.
Existe aqui um interesse muito maior pela observação empírica da inserção, em um ecossistema equilibrado, de um ser estranho, do que pelo antagonismo evidente de um cinema mais clássico. Se transforma a natureza da relação entre as imagens ali dispostas e o próprio espectador, em um jogo próximo do próprio proposto a Kaspar Hauser. Saído de um pequeno e escuro quarto, com ninguém além de um homem misterioso a lhe indicar que conhecimentos absorver e quais não, o protagonista emerge em uma civilização como uma tábula rasa, ansiando por sua formulação.
Não demora para que a verdade seja posta em suspensão, e a maleabilidade daqueles registros se apresentem. Esses apontamentos não contradizem a naturalidade anterior do longa, não introduzindo planos que buscam em uma estilização para ilustrar a filosofia sendo aqui discutida – à exceção, talvez, do quadro em que Kaspar fita o próprio semblante em um jarro de água, cuja fluidez desfaz a sua forma. Isso é dizer que correntes religiosas, interesses econômicos e demais bases sociais começam a se apresentar na vida em formação do personagem, guiando-o por caminhos que sequer é capaz de julgar como sendo contrários as suas vontades.
Voltando mais uma vez às raízes platônicas da narrativa – e no que dizem respeito ao Mito da Caverna, em que se constata que a percepção de vida de homens que viveram a vida inteira em uma caverna seria completamente diferente daqueles que não o fizeram -, se alcança a indefinição de uma figura que aparenta a simplicidade. A verdade se constroi nada mais nada menos que a partir dos princípios, morais e ideais do meio em que crescemos, completamente sujeita a relativizações e questionamentos. No caso de Kasper Hauser, ele se vê ameaçado por várias tentativas de cristalização da mesma, ainda que encontre uma forma de pensar por si em meio a elas.
Isso é engrandecido por lentes que optam por priorizar essa persona em detrimento dos ambientes que a revestem. Apesar da beleza da ambientação, não existe no filme a intenção de caracterizar a cidade em que se desenrola, confundível como qualquer outra da época. Tal escolha não apenas corrobora para o teor psiquíco que Herzog visualiza, como também se atenta para a o dilema metafísico que Bruno S. conjura. Imerso em pequenos gestos, espasmos e espontaniedades do corpo, ele dá luz a um homem que em nada se encaixa no espaço em que se encontra.
A sua forma de se locomover pelos ambientes é diferente. O seu andar se distancia dos demais – embora as tentativas civilizatórias tentem se imbuir desse “problema” -, e a decupagem atenta a esse universo de intimidades alavanca uma dissonância entre o físico e o espiritual. A falência do corpo se ressignifica como método de resistência.
O ator cria uma intimidade corporal com aquela personagem que transmite grande credibilidade, subvertendo a concretude de uma sociedade arcaica perante os olhos do espectador. Novamente, nada disso acontece dentro da esfera do melodrama e das viradas dramatúrgicas. O ritmo lento flerta inclusive com um determinado afastamento em relação aqueles que o acompanham, fazendo-o justamente para tornar a participação do público mais desafiadora.
Ao final, ficamos a cargo de julgar Kaspar Hauser, de forma não necessariamente moral, mas deixados a nos decidir entre a dependência por símbolos concretos, ou seguidores de uma potência de indefinição. Âmbiguo, “O Enigma de Kaspar Hauser” tem em sua naturalidade, talvez, sua maior estratégia de fascinação. A paciência de Herzog para com as “excentricidades” do protagonista invocam a plateia a retrabalhar as suas própria noções, ultrapassando as arestas de suas próprias imagens ao compreender como bela a volatilidade da essência humana.