“O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA” – A higienização do pós-vida
Seja pela relação onírica entre o homem e o espaço impressa por Michelangelo Antonioni, pelas reflexões duríssimas do fabular de Roberto Rosselini, ou pelas rememorações fantásticas de Federico Fellini, não é difícil de se apaixonar pelo cinema italiano. Embora a comparação com esse titãs possa ser injusta, alguma instância de O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA flerta com aquele mesmo realismo mágico, observando dramas humanos através de um prisma saído do imaginário. Apesar da amplitude sugerida pelo último, predomina a covardia da recente onda de produções esterilizadas, pouco confiantes nas lacunas entre as suas imagens e a interpretação.
Um anjo desce à terra para auxiliar quatro pessoas pendendo ao abandono da própria vida. Jamais nomeado, ele deve apresentar como o mundo seria após as partidas, levando o grupo a questionar suas vivências e repensar o aguardado destino. A maneira como acabam interferindo na trajetória uns dos outros revela dificuldades e belezas do viver.
Dirigido por Paolo Genovese, a atmosfera do projeto se destaca em seus minutos iniciais. A saturação exagerada das luzes noturnas, em uma sequência desenhada por fontes difundidas pela chuva, constrói uma espécie de camada acima da vida. As reminiscências dos planos, que esbanjam um jogo entre flashes, partículas luminosas e pontos de desfoque, sugerem uma continuidade entre a existência física e sua transcendência. São elementos gráficos de uma graça até já saturada, mas que aqui engrandecem a apresentação das personagens. É como se existisse um poste para cada membro do elenco, de maneira mais metafórica do que literal, convertendo as ruas italianas em uma extensão de suas experiências e sentimentos.
A graciosidade do olhar de Toni Servillo, figura angelical e coesiva do longa, tem sua naturalidade dentro da cena de abertura. Ele entrelaça narrativas pela emulação de sutilezas, convidado o quarteto de coitados a se unir a ele, desvendando as passagens de cada um apenas com os olhos e revelando, no rosto cansado, aquilo em que a eles se assemelha. Surge a ambiguidade de um conto sobre os limiares entre a vida e a morte, disposto a revolver tal temática junto do distanciamento necessário de algum absolutismo.
Seria algum exagero afirmar que o último ameaça ressurgir na medida em que os diálogos despontam, verbalizando a lógica descrente do universo proposto de Genovese. Isso porque o problema não se encontra necessariamente no texto. São muitos os capazes de converter a exposição e a tônica forte do dizer inflamado em combustíveis do melodrama, e mesmo sem o domínio da habilidade, esse ainda não é o grande erro do cineasta.
Ao se desviar do virtuosismo de uma trama de cadências e ceder a virtuosidade técnica, é na materialidade das abstrações que o projeto torna a se desamparar. A contextualização progressiva dos códigos daquela experiência expulsa o espectador, reduzindo a presença de cada um dos rostos suspensos no tempo. Acontece uma sabotagem de aderência, típica em filmes que se propõem a elucidar possíveis incógnitas capazes de catalisar uma maior conexão com o que se assiste.
Curioso observar como em nada tal afirmação visa atacar o cinema de estruturas clássicas, com protagonistas de fácil identificação ou elementos terceiros de uma pasteurização, e nem por isso negativa, cinematográfica. O apontamento se deve à bagagem discursiva que “O primeiro dia da minha vida” tenta tatear, flertando, de diversas maneiras, com a fé em seu sentido mais ontológico. Acreditar em imagens, símbolos e, principalmente, reconhecer a vastidão de significados que podemos atribuir a ele parece estar entre algumas das maiores preciosidades do cinema.
Talvez a imortalização de mestres como os mencionados se deva a esse reconhecimento da distância pelo autor, sua incapacidade de evocar uma verdade única. Desvencilhado da maneira como a câmera captura a realidade em seu prólogo, Genovese plastifica seu filme com a mesma neutralidade cinzenta dos grandes serviços de streaming.
A banalidade com a qual compõe seus quadros contradiz a esperança teorizada pelo protagonista, investindo em planos límpidos e de insegurança bastante díspar se comparados com os do início. Um representante sintomático, embora não cabule a produção por inteira, de uma cinematografia que deixou de acreditar nas imagens.
É de se estranhar como a reprodução desses sintomas pode prejudicar uma obra com ainda mais força daqueles que fracassam, mas não sem antes tentar. Fica o gosto amargo de uma fantasia envergonhada de seu próprio gênero, de suas próprias raízes e simplesmente, de sua própria razão de ser. Existe beleza em observar a vida através do cinema. Mas é ainda mais belo romper com a veracidade na maneira de se olhar para o real, do que encaixotar a fantasia dentro de uma mera reprodução, fantasmagórica, da realidade.