“A BATALHA DE SOLFERINO” – A arte de valorizar dramas íntimos
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA.
O cinema é experiente em sobrepor dramas pessoais a conflitos generalizados. Na conexão entre personas e contextos, muitos protagonistas são representados pelo universo que habitam, encontrando nesse ecossistema extensões sensoriais e questões que dialogam com suas próprias necessidades internas. Ao inscrever as dificuldades maternas de uma repórter em meio à cobertura de uma grande manifestação, A BATALHA DE SOLFERINO constrói esse laço com bastante maturidade.
Prestes a cobrir uma mobilização de espera pelos resultados das eleições francesas, a jornalista Laetitia enfrenta uma crise em sua casa. As suas bebês não conseguem parar de chorar, o cuidador contratado parece extremamente inexperiente, e o ex-marido resolve visita-la um dia após o combinado. Em meio a gritos e lágrimas, ela parte para a Rua Soferino enquanto tudo desmorona ao seu redor.
Marcando a estreia da diretora Justine Triet, o filme mistura a ficção com o documentário, transpondo uma figura real para a ótica de uma câmera fabulativa. A derrocada de seu núcleo familiar pode ser lida pela tensão que aflorou as ruas da França em 6 de Maio de 2012. A direção do longa potencializa os representantes desse círculo nuclear em meio a um contingente de transformações políticas e sociais, propondo um casamento entre o público e o privado.
Ao partilhar do mesmo nome que a sua personagem, a atriz Laetitia Dosch é uma das evidências do vínculo que o filme assume com o naturalismo, propondo uma ideia de dissolução de problemáticas individualizadas em meio às grandes massas.
Ainda que os problemas enfrentados dialoguem com o feminino e as complexidades da maternidade, existe ali um espaço íntimo em colisão com um mundo exposto e polarizado, reduzido a duas grandes ondas de pensamento político. Nem por isso as lentes de Triet se desvencilham de cada coordenada das ações familiares, submetendo o futuro de uma nação à própria vida de Laetitia.
Não é como se a protagonista herdasse o peso de uma presidência ou qualquer outro cargo pomposo, mas chama a atenção como Triet sabiamente a mantém como centro daqueles acontecimentos. O amor pelos filhos se opõe a dificuldade de criá-los. A importância enquanto repórter é desafiada pela insistência do ex-marido que ânsia por ver seus filhos. O controle e a segurança que apresenta frente às câmeras contradiz a implosão da vida em seu pequeno apartamento.
Justine investiga esses contradições com bastante humor, amortecendo o ritmo sempre frenético de maneira a revelar o ridículo de determinadas situações. A escolha equivocada de levar as crianças para a manifestação, para as afastar do ex-marido, por exemplo, amplifica uma atmosfera crescente de forma cômica. Isso constitui uma incerteza onde tudo se torna possível, fantasiando uma obra dependente, apenas na aparência, de acontecimentos mais concretos, mas comprometida com a fabulação.
Indo além, é interessante observar a ideia de masculinidade que o filme constrói, sempre colocada com um satélite, orbitando os feitos de Laetitia e impondo, ainda que indiretamente, algum grau de controle sobre ela. A insistência do personagem de Vincent Macaigne em visitar os filhos, por exemplo, é abordada com muita ironia, revelando ali um homem frágil cuja insegurança é capaz de distorcer princípios básicos para alcançar o que deseja. Essa presença abala a performance da protagonista enquanto repórter, atormentada pelas diversas presenças que entram e saem desse seu dia lunático.
Triet manifesta assim, e especialmente pela associação entre a faceta materna e profissional de sua figura central, a força do feminino enquanto protagonista de situações injustamente desvalorizadas, apagadas em meio a situações comumente sequestradoras das câmeras, subjugadas por olhares da sociedade. O teor temática se traduz em forma, produzindo uma atmosfera angustiante mas igualmente hilária na maneira como justapõe grandes conflitos e complexidades tão pessoais.
A naturalidade dos dramas e do microcosmos de relacionamentos não demora em nos conquistar, emergindo o espectador nesse teatro humano que, apesar dos cortes, consegue transmitir a impressão de um plano sequência. Dessa forma, “A batalha de solferino” destaca os dilemas de uma vida sublimada por questões mais chamativas, mas sem jamais ceder ao brilhantismo das câmeras e sempre ressaltando a força dos traços mais individuais.