“NIMONA” – Fluidez de gêneros
Contos de fada costumam começar com “era uma vez” e se encerrar com “felizes para sempre”. Nos últimos anos, essa narrativa secular convive com a manutenção de certas convenções e com a atualização de outros elementos. A imagem da mulher como donzela em perigo que precisa ser salva pelo príncipe encantado já foi questionada, por exemplo, em “Valente” e “Frozen“. Outras características tradicionais são subvertidas em NIMONA, animação que dá fluidez aos gêneros em suas múltiplas acepções.
Baseado na graphic novel homônima de N. D. Stevenson, o filme mostra o recém-empossado cavaleiro Ballister Boldheart envolvido em um crime que não cometeu. Por ser perseguido pela Instituição, governo que protege o reino de eventuais monstros, ele precisa se esconder enquanto pensa em uma maneira de provar sua inocência. Nesse ínterim, a única ajuda que se apresenta a ele é Nimona, uma jovem que pode se transformar em qualquer outro ser, que também é perseguida por ser quem é.
Em muitos sentidos, a animação tem uma identidade fluida. Levando em consideração apenas premissa, não é surpreendente associar o universo diegético ao mundo medieval. São muitos os aspectos que evocam tal associação para uma história de capa e espada: a existência de reinos, reis e rainhas, a fábula de origem da guardiã Gloreth, a tradição aristocrática para a nomeação de cavaleiros protetores, as indumentárias de espadas, armaduras e capacetes e a ameaça de monstros. Porém, os diretores Troy Quane e Nick Bruno fazem a narrativa avançar milhares de anos até chegar a um futuro encenado como uma distopia, dotada de grande avanço tecnológico (armas programadas digitalmente, naves voadoras, outdoors modernos…), da existência de uma entidade vigilante e de uma concepção visual similar a “Blade runner“. À primeira vista, a combinação pode ser arriscada e sufocar dois estilos muito característicos. Ao longo da projeção, a miscelânea cria efeitos interessantes que reforçam a ideia de fluidez.
Além de contestar a obrigação de se filiar a um gênero cinematográfico específico, a obra também expõe as contradições presentes em algumas representações do mundo medieval. O período já foi chamado de “Idade das trevas” por artistas renascentistas e idealizado na cultura pop sob a chave da coragem e da bravura. Por sua vez, Troy Quane e Nick Bruno representam esse passado de forma crítica por outro viés. Em termos visuais, o imaginário medieval é apresentado como um produto de entretenimento a ser consumido em jogos de tabuleiro, campanhas publicitárias e transmissões dignas de um reality show para a nomeação dos cavaleiros. Enquanto a população parece se divertir, ela mesma fecha os olhos para problemas sérios da Idade Média. Ballister é julgado e inferiorizado porque não descende de uma linhagem nobre que o faria “ideal” para o cargo a que se candidatava, sendo, por isso, visto com suspeita. O mesmo personagem precisa esconder o relacionamento amoroso que tem com o cavaleiro Ambrosius Goldenloin, em virtude da homofobia da sociedade, sobretudo em uma função atribuída a certa noção retrógrada de masculinidade.
Quando Nimona entra em cena, a discussão sobre fluidez ganha novos sentidos que se comunicam com a contemporaneidade. A jovem transmorfa pode assumir diferentes formas físicas, sejam elas humanas, sejam elas de outras espécies animais. Em muitos momentos, Ballister questiona o que Nimona seria e até se seria um “monstro”. As reações da personagem são sempre as mesmas: rejeita veementemente ser chamada de monstro e responde naturalmente à pergunta de “o que seria” com a frase “eu sou Nimona”. Não se trata, portanto, de defini-la dentro de algum padrão, pois tais definições geralmente esvaziam a complexidade das identidades e carregam um forte preconceito. Ela é quem ela é, múltipla, dinâmica e basta saber seu nome para saber quem é, não o que é. A partir da jovem, o roteiro trabalha o subtexto das diferentes sexualidades e identidades de gênero e como ela também é excluída nessa sociedade que ataca a diversidade. Logo, é muito importante que a animação não explique as origem dos “poderes” de transformação porque assim é possível tratar com naturalidade a personagem pelo que ela é e não por algo que a teria feito ser como é.
Ballister e Nimona se encontram e se alinham não porque a narrativa cede aos clichês de uma relação entre dois personagens que se desentendem no início para se acertarem depois ao passar um tempo juntos. Eles se veem como pessoas que têm muito em comum, especialmente a luta por serem o que são contra as perseguições sofridas. Nesse sentido, é possível colocar em primeiro plano os debates sobre o que é ser um vilão e um monstro. O cavaleiro é confrontado constantemente por pressões para que enfim aceite a vilania que tanto atribuem a ele para se vingar de que o incriminou por algo que não fez. A jovem é confrontada por diferentes situações que a colocam como uma monstruosidade a ponto de fazer seu sofrimento levá-la para um caminho sombrio. Nos dois casos, as leituras unidimensionais e rasas para vilania e monstruosidade vistas com regularidade nos contos de fadas são colocadas em xeque. Ser vilão é realmente ser uma figura plana sem contradições e nuances? Ser um “monstro” não seria consequência de condições sociais que enxergam o outro, o diferente como uma ameaça?
O mundo medieval seria, então, símbolo de atraso enquanto o futuro tecnológico seria a evolução? A dupla de cineastas tem consciência de que seria uma armadilha cabível para a relação que se estabelece entre os dois gêneros cinematográficos. Por isso, trata-se de uma distopia, ou seja, a imaginação de como pode ser o futuro se as mazelas do presente não forem superadas. A exclusão não é própria apenas do passado, como Ballister e Nimona demonstram. A Instituição se comporta como uma instância opressora que vigia os habitantes, impõe o que pode e o que não pode e se sustenta através de uma cultura do medo em torno de supostos monstros e da necessidade de ficar nos limites dos muros em torno do reino. E quando os planos da diretora estão sob risco, fake news e alegações de manipulação digital (problemas típicos de nosso tempo) podem ser mobilizadas a favor de seus interesses autoritários. Aliás, a narrativa também se encontra com o tempo do espectador ao fazer com que a frase “esse monstro ameaça o nosso modo de vida” se relacione com os discursos reacionários e preconceituosos que violentam grupos sociais minorizados.
As diferentes abordagens de “Nimona” igualmente se sucedem com naturalidade. As discussões sociais e os conflitos dramáticos não invalidam a presença da comédia e da ação. A convivência entre Ballister e Nimona rende bons momentos de humor, principalmente graças às sucessivas transformações físicas da jovem. Já as cenas de ação possuem um senso de dinamismo que movimenta a trama e envolve o espectador na jornada dos protagonistas, como se pode ver nas duas sequências em que fogem de seus perseguidores e a encenação estende a duração dos planos com poucos cortes. O clímax sintetiza muito bem cada abordagem ao utilizar a dinâmica dos filmes de monstro, como “Godzilla“, e logo em seguida subvertê-la para humanizar quem supostamente seria um monstro a partir de dilemas emocionais muito dolorosos. Após isso, o “era uma vez” e o “felizes para sempre” podem não ser os mesmos de outrora, mas podem assumir configurações diferentes em razão da fluidez de gêneros textuais, históricos, sociais, cinematográficos e identitários.
Um resultado de todos os filmes que já viu.