“A COR PÚRPURA” (2023*) – O abandono da vocação melodramática
O livro de 1983 venceu um prêmio Pulitzer. O filme de 1985, dirigido por Steven Spielberg, foi indicado em 11 categorias do Oscar. O musical da Broadway, indicado e vencedor em diversas categorias de teatro, como o Tony Awards, tendo ganhado até mesmo um Grammy. Chegou a vez de A COR PÚRPURA (2023*) ganhar uma versão musical para os cinemas, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar (atriz coadjuvante – Danielle Brooks). Uma melhor compreensão do seu cerne teria um resultado igualmente arrebatador
A vida de Celie sempre foi extremamente difícil: com um pai abusivo em casa, foi vendida a um homem não menos cruel. Sua irmã Nettie era fonte de alegria e acolhimento, mas até mesmo da sua companhia ela foi privada. Conhecendo mulheres fortes, Celie aprende o valor da sororidade e a defender a si mesma.
De maneira bastante resumida, o principal problema do longa é estilístico, referente à brandura com que o diretor Blitz Bazawule o conduz. Certamente não há nada errado em ter uma visão própria, isso seria elogiável se não houvesse um conflito com o espírito da ideia inicial. O livro de Alice Walker é dotado de uma pujança arrebatadora, o que Spielberg compreendeu em 1985, ao contrário de Bazawule. Talvez o fato de Walker ter sido corroteirista naquela versão, ao invés do trabalho solitário no script por parte de Marcus Gardley, tenha sido um diferencial. Fato é que a produção de 2023 acaba por dissolver a vocação melodramática da tocante história, cujo potencial é, por conseguinte, muito atenuado.
Bazawule não quer explorar a realidade precária em que Celie e os demais negros vivem, razão pela qual a vida difícil no campo é pouco explorada. O primeiro número musical é “Hucleberry pie”, uma canção infantil e alegre que representa o country, repetido em outras músicas (geralmente com banjo e gaita); o segundo, “Mysterious ways”, deixa claro o forte viés religioso (o que faz sentido e é um acerto) e é exemplo do tom gospel do libreto. Eventualmente, o blues também é coerente (“Miss Celie’s blues [sister]”), porém o tom animado prevalece, como o pop de “Keep it movin’” e de “Miss Celie’s pants”. Não se trata da mera construção do libreto, mas de uma escolha estilística que prioriza o contentamento a despeito do contexto lamentável. O segredo está justamente no modo como esse contexto é mostrado, ou melhor, não é mostrado.
Assim, no roteiro, passagens que poderiam ter impacto são breves, como as lições da mãe de Celie (sobre manter a cabeça erguida, que está em apenas uma fala de Nettie), a violência da qual a protagonista é vítima (é tão abrupta que perde o significado) e mesmo as lições de sororidade (o salto emancipatório de Celie é repentino e, portanto, pouco convincente). Tudo isso faz falta porque, ainda que Fantasia Barrino tente fazer de Celie uma mulher que sofreu, existem lacunas sobre esse sofrimento, diretas ou indiretas. Em 1985, a coragem em explorar a sexualidade foi maior que em 2023 (apenas na primeira versão fica explícita a desassociação de Celie entre sexo e prazer), além disso, somente no filme de Spielberg fica claro que a protagonista teve sua infância roubada. A elipse de Phylicia Pearl Mpasi para Barrino no papel principal é esteticamente bem feita, mas o amadurecimento não reflete o sofrimento que deveria ficar subentendido. A dificuldade de Celie em mostrar seu sorriso, por exemplo, é completamente obliterada. Interpretando Sofia, cabe a Danielle Brooks (certamente a melhor do elenco) toda a carga dramática, diante de um evento que é um marco indispensável na trama. Ainda assim, Bazawule claramente deseja uma versão menos raivosa da personagem quando comparada à vivida por Oprah Winfrey: a Sofia que conhece o terrível “Mister” (muito bem interpretado por Colman Domingo) – a legenda nacional preferiu esse nome a “Sinhô”, da versão anterior – é empoderada e valente, longe do furacão de Winfrey.
Como se vê, a visão luminosa de “A cor púrpura” não é escolha simples, dado que reflete nos números musicais, no roteiro e nas atuações. A estética é também afetada, como na maquiagem (a aparência de Sofia é muito menos chocante na comparação) e no design de produção (o simbolismo de Shug jogar comida na parede é menor). Na fotografia, de um lado, faltam os gramados floridos (as flores são poucas) representando a cor que dá o título, de outro, preponderam tons pastéis e um escurecimento que pode entristecer a atmosfera, mas prejudica a visibilidade do elenco de pessoas negras. O fato de o diretor ser negro faz subentender uma abordagem rica do racismo, mas as menções são, em geral, demasiado breves para levar a uma reflexão.
Enquanto musical, observa-se um requinte na adaptação ao explorar diversos estilos, como o psicológico (números que ocorrem apenas na mente da personagem, caso de “She be mine”), o narrativo (com relação direta com o avanço narrativo, como “Shug Avery”) e o fantástico (com toque surreal, como “What about love?”). Contudo, isso é fruto da adaptação da peça, não da obra original. Na tradução do livro para a linguagem cinematográfica, existem equívocos de fácil percepção: além dos exemplos mencionados, pode-se citar a dificuldade da direção no ritmo da película (que é acelerado no começo, mas ganha uma lentidão decepcionante à medida que evolui), e no timing de cenas cruciais (a cena que muda a vida de Sofia). A conclusão é que a inabilidade dramática de Blitz Bazawule o descredencia para dirigir um longa pesado e complexo como “A cor púrpura”, cujas ideias sobre racismo, sororidade, sexualidade e patriarcado são vulgarmente substituídas por um ideal de esperança inabalável e acrítico.
* Apesar de lançado no Brasil em 2024, a data oficial da produção é 2023.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.