“A SOCIEDADE DA NEVE” – Dramatizando ruídos
Não é novidade que grandes tragédias históricas acabam sendo abraçadas pelo cinema. Muito da relação entre o homem e a natureza surge nessas adaptações, ressaltando um inevitável descompasso. Seguindo essa tendência, infelizes fatos da realidade são convertidos em projetos inspiradores e de conscientização, ditando um verdadeiro gênero dentro do audiovisual. Embora certos casos proporcionem interessantes exercícios sobre essas dinâmicas, muitos se reduzem a mercantilização de dores humanas, que pouco justificam um viés artístico. Esse é o caso de A SOCIEDADE DA NEVE, filme original Netflix que dramatiza a queda de avião que prendeu e aprisionou diversos jogadores de um time argentino na Cordilheira dos Andes.
Animados para viajar ao Chile, os integrantes de uma seleção de rugby partem com familiares e amigos em um pequeno avião. Ao se deparar com uma tempestade, o veículo colide com os Andes e leva à morte de alguns e o exílio de outros. Resta agora lutar pela sobrevivência quando o mundo parece lhes ter virado as costas.
Amparado por uma condução mais clássica, é interessante observar como o diretor J.A Bayona manipula alguns sensos de destino e crença, nutrido pelas personagens. Embora seus diálogos se amparem em questões mais mundanas – como o cotidiano deixado para trás, as convivências com entes queridos, entre outros lapsos de tormento -, ele conduz bem a disjunção entre a perseverança dos sobreviventes e a força do desconhecido.
Isso encadeia uma lógica de montagem até interessante na interpolação de causas e efeitos. É como se cada núcleo de desenvolvimento das personagens e suas doutrinas particulares – seja na fé, presente em uma das primeiras cenas, no desamparo ou em morais mais primordiais -, fosse atropelado por fenômenos naturais. Exemplo disso está na cena do colapso em si, como também na sequência de um terrível deslocamento de neve que acomete a já prejudicada aeronave.
Essa passagem em específico retrocede a construção de todo um conjunto de regras e lógicas, nutrido pelas personagens. Embora seus diálogos se amparem em questões mais mundanas – como o cotidiano deixado para trás, as convivências com entes queridos, entre outros lapsos de tormento -, ele conduz bem a disjunção entre a perseverança dos sobreviventes e a força do desconhecido.
Isso encadeia uma lógica de montagem até interessante na interpolação de causas e efeitos. É como se cada núcleo de desenvolvimento das personagens e suas doutrinas particulares – seja na fé, presente em uma das primeiras cenas, no desamparo ou em morais mais primordiais -, fosse atropelado por fenômenos naturais. Exemplo disso está na cena do colapso em si, como também na sequência de um terrível deslocamento de neve que acomete a já prejudicada aeronave.
A última passagem, em específico, retrocede a construção de todo um conjunto de regras e lógicas, atravessando o debate sobre a manutenção através da alimentação dos corpos uns dos outros – entre outros exemplos que os fazem sobressair princípios básicos de suas vidas -, e estabelecem essa relação macabra entre a espécie humana e o mundo em que habitam. Esse laço seria muito bem vindo, entretanto, não fosse o manuseio espetacular da câmera, que tenta retirar a inação de um projeto pasteurizado em cima de um acidente que arrancou a vida de muitos.
Tal crítica se justifica pela estilização em lentes grande angulares, ou pela movimentação frenética que procura intensificar a tensão compartilhada pelo grupo derrocado. Grupo esse que, inclusive, ainda que desponte com algumas lideranças – e o que até rende uma significação interessante de signos e títulos em tempos de desespero, caso da importância simbólica de Numa Turcatti (Enzo Vogrincic) -, tem uma construção precária em suas particularidades. Mas voltando ao uso leviano da câmera, menos sobre esses recursos específicos, mas pela falta de um distanciamento respeitoso na investigação de dores humanas. O trágico é feito de espetáculo, da maquiagem de efeitos que detalha a deterioração de uma personagem, ao momento catártico da colisão.
É como se a direção julgasse a natureza do próprio acontecimento insuficiente, propondo a reflexão através dos horrores mais precisos dos acontecimentos. Nisso, aquela mesma balança do jogo entre a natureza e o homem acaba pendendo, mesmo que inconscientemente, para a última, ainda que certos convencimentos funcionem – como a revolta sentida no momento em que se escuta, através do rádio, o cancelamento das missões de busca pela equipe. São recursos que prometem uma profundidade humana distante das capacidades de uma cinema industrial, tão mecânico quanto a recriação digital da destruição de um avião. Os planos fechados não nos conectam, necessariamente, com as expressões que contêm, realçando um vazio incidental que esvazia as possíveis boas intenções de um produto inspirador – e que, se ao contrário, reconhecesse a nossa incapacidade de reproduzir outras vivências humanas, poderia trazer uma interessante discussão.
Ainda que os momentos finais advogem a importância da esperança, e mesmo os tons mais quentes da fotografia passem a traduzir esse calor, carece o reconhecimento da essência de uma tragédia em seus fundamentos. Uma essência que se transmuta em imagens que jamais poderiam ser compostas. Distantes da opressão física submetida a rostos e corpos, traídos pela incapacidade de compreender o que poderiam ter feito para merecer tamanha provação.
Isso sem falar da fragmentação identitária de mais um projeto que se fantasia de latino-americano, mas se filia aos códigos mais tradicionais de uma grande produção hollywoodiana. Como preservar a dor de demais sujeitos em meio a deslocamentos como esse? Por melhor intencionada que seja a sua criação, “A sociedade da neve” acaba reduzindo uma duríssima experiência humana a especulação de grafismos espalhafatosos, que se tentam conquistar pela sua concretude pictórica, pecam pelos ruídos que se espalham pelas montanhas nevadas. Resta torcer para que nem todas as tragédias tenham como destino a ressignificação pelo esterilizado cinema industrial.