“CREEPY” – Os espaços que dizem muito
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
Os personagens nos filmes de Kiyoshi Kurosawa costumam ter dificuldade para se comunicar e construir ou preservar vínculos afetivos. Por exemplo, em “Pulse“, o advento da tecnologia da internet pode potencializar a solidão. Já em CREEPY, a incapacidade de falar perpetua mistérios e dramas que difundem uma profunda melancolia. Nesse último caso, se os indivíduos não se expressam tanto, os espaços cênicos são o oposto e dizem muito a partir do que são, do que mostram e do que ocultam.
Quem precisa renovar a vida e direcionar o relacionamento para outros rumos é o casal Takakura e Yasuko. Após as consequências violentas da fuga de um preso, o homem deixou de ser detetive e se mudou com a esposa para uma nova casa. Mesmo se retirando do cargo, Takakura aceita ajudar um antigo colega a investigar o desaparecimento de uma família há seis anos. Enquanto isso, Yasuko tenta se aproximar dos vizinhos e conhece Nishino, um sujeito estranho que vive com a esposa doente e a filha Mio.
Kiyoshi Kurosawa apresenta o casal principal a partir da ideia de recomeço: uma nova residência, uma nova profissão para Takakura (professor universitário) e uma nova relação para ambos. Porém, falta a eles a possibilidade de realmente estabelecer uma comunicação entre si e com outras pessoas. Takakura comenta que gosta de dar aulas porque se conecta com os estudantes, mas jamais se vê algo assim em aulas frias que mais parecem palestras distantes ou em horários de intervalo afastado dos jovens. Yasuko se esforça para ser a vizinha cordial, aquela que chega a um lugar novo e presenteia os vizinhos próximos com chocolate, mas não recebe uma resposta positiva da senhora antissocial que cuida da mãe enferma nem de Nishino, que parece desagradável, excêntrico e intimidador. Quando os dois personagens se reúnem à noite, era de se esperar um reencontro afetuoso, mas dia após dia apenas conversam sobre banalidades e sem troca de carinhos.
A mesma dinâmica de silêncios define os enigmas que perpassam a narrativa. A investigação retomada por Takakura e Nogami tinha como objetivo desvendar o paradeiro de pai, mãe e filho que sumiram e deixaram a filha para trás. Logo, a jovem seria a pessoa ideal para se interrogar em busca de pistas se ela não resistisse tanto a reviver o caso após ser pressionada pela polícia e pela imprensa. Outro problema surge quando aceita falar novamente: muitas lembranças foram reprimidas e outras ficaram nebulosas entre a realidade e a imaginação. Além disso, o estranho comportamento de Nishino oscila entre a ameaça, o assédio ou a simples excentricidade porque suas interações com Yasuko e Takakura ocorrem através de diálogos entrecortados, ambíguos ou inesperados. Teruyuki Kagawa concebe o personagem como um homem ameaçador e insólito apesar de não se saber exatamente o porquê dessa sensação. As atitudes incomuns de Nishino crescem até chegar a uma proporção arriscada porque ninguém ao redor dele fala abertamente e em detalhes o que o presenciou fazendo.
Se Takakura, Yasuko, Mio e Nishino não se expressam por completo ou com honestidade, o mesmo não pode ser atribuído às principais locações onde o mistério se desenrola. O cineasta trabalha de maneira expressiva duas residências para cada núcleo narrativo, fazendo com que elas transmitam diferentes reações ao aparecerem em cena. Ao transitar pela frente da casa da família desaparecida e ver a moradia ao lado, o protagonista e, consequentemente, o espectador, podem sentir um peso trágico e enigmático diante de um local que parece guardar segredos brutais. Kurosawa representa essa sensação ao fazer um plano aéreo que se distancia das duas propriedades dando a devida imponência que as perguntas não respondidas possibilita. Ao retornar para seu lar, Takakura espera encontrar o conforto da intimidade, mas no mesmo terreno está a casa de Nishino, sendo que Yasuko passa muito tempo sozinha e vulnerável. Outros aspectos espaciais interessante se sobressaem, como a área que conecta as duas casas principais e o contraste entre a entrada da residência de Nishino e o interior do local.
Os espaços trabalhados pelo filme não são sempre literais. Kurosawa dá vazão também aos simbolismos possíveis para a noção espacial do que a câmera regista. Um recurso poderoso e recorrente é a utilização de janelas em diversas sequências, todas elas tendo o ex-detetive à frente sem conseguir se comunicar ou fazer seu raciocínio ser aceito por outros personagens. Como exemplo, o protagonista aparece nessa posição tentando obter informações preciosas de um serial killer antes de uma tragédia e desfrutando de seu tempo após as aulas enquanto os estudantes deixavam a universidade. Em outras passagens, o diretor varia o ponto de vista da câmera para dar atenção ao espaço fílmico, aos limites do que o quadro engloba ou não. É assim que o suspense ou o choque são produzidos, como o movimento descendente do equipamento para registrar algo no corpo de Yasuko e o posicionamento da máquina de modo a ocultar o que o olhar assustado de Nogami alcança na casa de Nishino. Outra variação na perspectiva do quadro lança uma pista importante para os dois núcleos, quando Takakura observa a expressão “pessoa misteriosa” escrita em seu caderno e a cena seguinte aponta a câmera para outro personagem no metrô.
Por algum tempo, a narrativa depende da expressividade dos espaços, simbólicos ou literais, e menos da verbalização dos personagens ou das explicações diretas do roteiro. Como consequência, o filme se desenvolve de forma implícita, nas entrelinhas de conflitos e acontecimentos até a virada para o terceiro ato. Nesse sentido, não é a intenção de Kurosawa dar todas as respostas para os questionamentos que o público passa a ter ao dimensionar o que pode ter acontecido à família desaparecida e o que está em jogo na relação de Takakura, Yasuko, Mio e Nishino. No terceiro ato, as sugestões até então existentes na trama ganham maior concretude a partir do instante em que o cineasta encena a violência diretamente e expõe os objetivos do vizinho. Mesmo com a mudança, um interesse incomum se mantém para seguir a obra até o fim, uma espécie de desolação contagiosa frente à incomunicabilidade dos personagens que os levam a cair em uma armadilha mortal. E o cineasta trabalha muito bem o esvaziamento de qualquer sentimento positivo que poderia ter existido anteriormente.
“Creepy” articula gêneros cinematográficos distintos enquanto discute os isolamentos a que a humanidade pode se submeter se não efetivamente se comunicar. Drama, suspense, policial e terror se mesclam para delimitar uma visão autoral que extrai de cada abordagem potências para desenvolver as dimensões da incomunicabilidade crescente. Relações amorosas podem ser afetadas, mistérios podem ser produzidos e situações tensas podem ser vivenciadas. Tudo isso leva a um clímax que não abre mão dos princípios dramatúrgicos e narrativos estabelecidos em sua unidade estilística. Os planos de Nishino, transformados continuamente, depende da busca por novos espaços expressivos. E o grito final de Yasuko reverbera de formas diversas, todas elas sintomáticas de como qualquer tipo de comunicação emocional fez falta ao casal.
Um resultado de todos os filmes que já viu.