“O MOTORISTA DE TÁXI” – Uma jornada para além de um táxi
As manifestações de Gwangju foram eventos importantes na história recente da Coréia do Sul. Manifestantes resistiram à ditadura de Chun Doo-hwan e foram massacrados pelo exército na década de 1980. Tais fatos reais servem de ambientação histórica para a trajetória do taxista Man-seob, quando transporta acidentalmente o repórter alemão Peter, que pretendia registrar a violência do governo na cidade de Gwangju. Durante a travessia, o protagonista passa por transformações que o fazem questionar sua posição política.
O MOTORISTA DE TÁXI é estruturado em torno do arco dramático vivido por Man-seob, deixando sua ingenuidade em relação aos acontecimentos políticos para assumir uma consciência maior. No início do filme, ele se preocupa apenas em fazer seu trabalho e cuidar sozinho da filha após a morte de sua esposa – assim, não aceita perder dinheiro pelas viagens que faz, procura se beneficiar de chances de ganhar mais e não se envolve em política. Em relação aos protestos de estudantes contra o governo, tem um posicionamento contrário: quando vê as ruas bloqueadas resmunga dizendo que não reclamariam do país se conhecessem outros lugares como a Arábia Saudita; enquanto levava dois passageiros, diz que os estudantes deveriam estar estudando nas faculdades e não criando confusão; à noite, ao ouvir o rádio com as notícias das manifestações, apenas lamenta os prejuízos para seu trabalho. Ao longo da projeção, o protagonista revê sua postura e, gradativamente, passa a agir em apoio aos manifestantes. As mudanças pelas quais ele passa estão diretamente relacionadas a tudo o que presencia: a violência do exército, os mortos e feridos no hospital, a destruição da cidade e as deturpações das informações pela mídia. As sequências em que não consegue entender o porquê do uso da força contra protestos pacíficos e em que ouve pessoas discutindo (erroneamente) sobre os incidentes são paradigmáticas para suas transformações.
A atuação de Kang-ho Song é importantíssima dentro da jornada do personagem. Compreendendo muito bem o desafio que tem em mãos, ele constrói um homem multifacetado e complexo por todas as características que possui. A primeira dificuldade seria transmitir as posturas díspares diante das revoltas políticas: inicialmente, seu semblante se mostra contrariado e entediado com os eventos políticos que se impõem sobre seu cotidiano; ao final, sua expressão facial combina a indignação e a decisão de agir contra o autoritarismo governamental. Outras dificuldades dizem respeito a outras camadas do personagem que envolvem sua personalidade: é um sujeito divertido e descontraído que canta dentro do táxi, aparentemente muito ambicioso, porém preocupadíssimo com o bem-estar da filha (a sequência em que chora aflito por sua filha é de cortar o coração). Pena que o restante do elenco está abaixo, inclusive Thomas Kretschmann vivendo o repórter alemão, apesar de ter mais tempo de tela em comparação com os demais atores.
A direção de Hun Jang também precisa enfrentar desafios relacionados à abordagem escolhida pelo filme. A narrativa alterna entre passagens cômicas na convivência de indivíduos de realidades distintas e momentos dramáticos das manifestações. O humor não é descartado porque ele pode fazer parte da vida daquelas pessoas como alívio das tensões ou como momentos corriqueiros do dia a dia, apesar dos riscos que corriam – a dificuldade de comunicação entre sul-coreanos e um alemão e uma sequência específica passada na casa de um taxista revelam instantes leves da história. Quando a seriedade é necessária, a perspectiva mais engraçada é suspensa de maneira orgânica e o drama resultante da repressão a Gwangju consegue emocionar personagens e espectadores. A obra é hábil em atravessar o humor e o drama sem tornar tais transições abruptas ou incoerentes. O cineasta ainda constrói planos expressivos visualmente sem depender de diálogos: um plano inicial começa no interior do táxi de Man-seob e só depois ganha o ambiente externo (referência à própria condição do protagonista); um travelling enfoca a tragédia desesperadora das vítimas feridas no hospital; e no terceiro ato, a câmera faz uma rima visual em relação ao primeiro plano, ao partir das estradas para entrar no táxi através de um buraco de bala no vidro do veículo.
Ainda no quesito estética, a fotografia diferencia uma Seul mais tranquila em virtude da recorrência de uma cor azul amena e dos próprios raios solares, de uma Gwangju convertida em palco de guerra devido ao uso de cores escuras ou desagradáveis (filtros em vermelho enegrecido e sépia) que desbotavam os cenários. E o design de produção constrói espaços na cidade insurgente que evocam uma imagem de campo de batalha (pichações nas paredes, prédios em ruínas, lixo jogado ao chão, sangue por toda parte…). Os problemas estéticos ficam por conta do uso desnecessário do slow motion nas sequências de ação e de uma trilha sonora excessivamente sentimental.
Tematicamente, o filme também é eficiente em destrinchar diferentes aspectos da turbulência política numa sociedade. A jornada central do protagonista convive com várias outras questões: a importância da opinião pública internacional diante de situações extremas; a possibilidade de distorção de informações por propósitos políticos pela imprensa; a formação de alianças inusitadas de indivíduos e grupos heterogêneos em função de um objetivo em comum, etc. Apresentar esses pontos enriquece a trama e oferece diversos desdobramentos para um mesmo acontecimento.
Ao fim de “O motorista de táxi“, entendemos como os comportamentos sociais podem ser mais complexos do que a pura defesa do status quo ou sua condenação. Múltiplos são os caminhos que os indivíduos podem trilhar. Assim como a riqueza de possibilidades oferecidas pela sétima arte.
Um resultado de todos os filmes que já viu.