“EAMI” – Imagens que transbordam
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA.
Entre inúmeras sequelas deixadas pelo colonialismo, a destruição de uma pluralidade histórica pulsa até os dias de hoje. Não são poucos os povos que tiveram suas casas arrancadas à força, expulsos de suas próprias raízes e proíbidos de manifestar qualquer traço de pensamento. Na tentativa de sintetizar, nem que representando uma pequena parcela, esse sofrimento internalizado, EAMI constrói uma travessia simbólica a respeito da necessidade de pertencer e reencontrar origens sublimadas através do tempo.
Partindo de uma figura mitológica do Chaco, região paraguaia que abriga tribos indígenas, o filme transmuta a figura da Asoja, ave capaz de assumir diversas formas, em uma pequena menina indígena, que carrega o título do projeto. Por seus olhos, somos testemunhamos de um fluxo que navega memórias, traumas e cicatrizes fundamentados em uma relação entre indivíduo e natureza. É o convite para um longa voltado a um formato experimental, impulsionado pela relação constante entre a memória e o narrar acima de qualquer outra potência.
Dirigido por Paz Encina, o filme se filia ao cinema de fluxo enquanto experiência de dilatação e subjetividade. Ainda que a diretora fundamenta uma protagonista literal, ela não se alonga em suspender a concretude da tal personagem, elegendo um mosaico de paisagens, gestos e lembranças, como o seu maior representante. Se Eami representa os condenados ao exílio, proibidos de habitar o próprio berço, nada mais justa uma alegoria a anulação de sua própria forma física, sintoma de uma longa e terrível tradição de invisibilidade.
Essa escolha autoriza o deslocamento de um contexto bastante bruto para um campo fabuloso, que recorre ao imaginário para revelar a resiliência que determinados símbolos podem assumir. Esteja esse impulso nos planos vestigiosos – pegadas, folhas caídas, terra quebrada – ilustradores de impactos físicos impressos em patrimônios ambientais, ou na incompletude de sombras e reflexos, é clara a escolha por uma ruptura gráfica.
Tal fator adiciona às vozes e gritos violentos que ecoam pela paisagem sonora, denunciando o ruído deixado pelas principais forças imperalistas da história humana. É como as personagens, em sua viagem de evasão na busca por um novo lar, já não pertencessem àquela paisagem, eliminadas da mesma na seleção de planos fechados e metafóricos.
Por outro lado, a extensão desses quadros introduz outro fator fundamental, parceiro dessa noção imagética de dualidade entre o visual e o abstrato: o tempo. É ele que permite um flerte mais direcionado ao inconsciente, extraindo as nossas reflexões e nos convidando a partilhar do mesmo transe em que nossas personagens se encontram mergulhadas.
A ideia é demonstrar como a gritante particularidade de Eami, a fidelidade do filme a iconografias típicas de sua tribo, e a imortalização de espaços reais em câmera documental são incapazes de superar a transcendência do discurso aqui pretendido. Uma fala que ultrapassa a necessidade de uma conscientização inicial e, na beira do filme-ensaio, articula a importância do registro em primeiro lugar.
Nisso cabe refletir ainda sobre um distanciamento propositado que pode recair sobre alguns. E nessa esfera o som, mais uma vez, acaba tendo um papel particularmente interessante. Ao separar, em uma lógica de montagem que coloca planos em paralelo, entre close ups da criança – geralmente recorrendo ao próprio inconsciente, regastando lembranças antigas enquanto permanece de olhos fechados -, e os vestígios deixados pela violência, o filme salienta um auto reconhecimento de sua carga alegórica. É como se a diretora Paz Encina admitisse a sua própria carga metafórica, buscando problematizar a própria ação da câmera.
Se o registro fílmico extrai ângulos específicos de um certo objeto, e o fragmento em perspectivas que nunca representarão o todo, acaba sendo lógica a reflexão sobre o instrumento de filmagem como uma espécie de arma, insersão que provoca um certo desequilíbrio. Aqui isso não se dá, propriamente, em uma relação entre “terra” e “estrangeiro”, se pensarmos nas próprias origens da cineasta. Mas nesse jogo de dicotomias entre signos e destruições cruas, com hibridismos entre a fabulação e o realismo, o potencial para se gerar ruídos aparenta ser enorme.
É nessa admissão última que o filme se admite como um exercício, junto ao debate político mais claro, sobre a própria arte de ilustrar, reconhecendo esses desvios como uma possibilidade mas que em nada inibe, mais do que os planos concretos em si, a intenção criadora do projeto.
Por mais abstratas que certas representações possam ser, cabe ao espaço artístico abranger as mais variadas maneiras de fazê-las, ainda que desprovida da capacidade de elucidar todas as mazelas históricas. Tão abrangente quanto íntimo, e entrelaçando depoimentos, pensamentos e imaginações em uma coletânea sensorial de dissociação entre a existência e o pertencimento, “Eami” deixa marcas que o colonialismo foi incapaz de apagar. O filme representa assim a beleza que é reinvidicar a reprodução de imagens livres para transbordar umas nas outras.