“DURVAL DISCOS” – Comédia musical de desastres
No fim da década de 1940, os primeiros LPs foram criados. Dono de uma estética charmosa, o disco de vinil reproduzia canções de músicos e bandas antes dos CD’s e das plataformas de streaming. Como o protagonista de DURVAL DISCOS descreve em algumas cenas, o charme está em apreciar a qualidade do som, escolher faixas diversas para posicionar a agulha e ouvir determinada canção e em desfrutar das diferenças entre os lados A e B. A estreia de Anna Muylaert na direção de longas-metragens incorpora na narrativa a ideia de que os lados A e B de um vinil são completamente diferentes, fazendo a própria comédia se transformar em duas faces diversas sobre tempo, amor, música e estilo cinematográfico.
A Durval Discos é uma loja onde Durval trabalha vendendo LPs. No mesmo local, ele vive com a mãe Carmita. O estabelecimento está em uma fase de decadência devido à decisão de não vender CDs e se manter fiel aos discos de vinil. Ao mesmo tempo, Durval decide contratar uma empregada para ajudar sua mãe nas tarefas domésticas. O baixo salário atrai apenas Célia, uma jovem que chega na companhia de uma pequena garota chamada Kiki. Após alguns dias de trabalho, Célia desaparece e deixa a menina para trás com um bilhete que voltaria dentro de três dias. Mãe e filho cuidam de Kiki e se afeiçoam a ela até serem surpreendidos com a descoberta de quem é a menina.
O lado A traz um amor pela nostalgia das décadas de 1970, 1980 e 1990. Situado no início dos anos 2000, o filme olha com ar afetuoso e saudosista para um tempo em que colocar discos de vinil para tocar era apreciado como uma experiência terna e calorosa diferente de outras formas de consumo musical. O protagonista resiste à chegada dos CDs, mesmo quando um visitante comenta que esta é a tendência para o futuro e as vendas caem. Além da saudade por esse hábito musical, a narrativa demonstra o mesmo sentimento por um modo de vida simples de contato muito próximo com a vizinhança. É o que ocorre, por exemplo, com as visitas constantes de Elisabeth na loja para fumar e trocar algumas palavras com Durval. São momentos singelos, mas suficientes para evidenciar uma rotina menos contaminada pela velocidade da vida contemporânea. Enquanto a nostalgia se manifesta, o público também é levado a conhecer e se sentir íntimo da dinâmica entre o protagonista e a mãe, sobretudo em relação à busca por uma empregada.
Ao longo deste lado do LP, Anna Muylaert estabelece uma comédia musical agradável e acolhedora. Isso porque a diretora faz a música ser uma característica fundamental da trama e da sua abordagem, de modo mais ou menos literal. Diversas cenas são pontuadas pela trilha sonora que vem dos discos colocados para tocar por Durval, um repertório típico dos anos 1970 e 1980, como “Madalena” de Elis Regina, “Besta é tu” de Novos Baianos, “Ovelha negra” de Rita Lee e “Irene” de Caetano Veloso. A sensação de estar diante de uma apresentação musical também é simbólica através de uma noção de movimento, de ritmo bailado desde a abertura. Na sequência inicial, a câmera passeia pela vizinhança com se estivesse em um balé que registra cada espaço comum da cidade e os nomes dos profissionais envolvidos na produção do filme em cartazes nas paredes, folhas de calendários, placas de cardápio de lanchonetes ou placas nas ruas. Em suma, a narrativa tem seu próprio tempo para acontecer, mas sempre com a ideia de movimento musical que pontua aquele universo com tantos eventos.
Com a entrada em cena de Célia e Kiki, a trama toma uma guinada para seu lado B. Inicialmente, a mudança não parece tão drástica porque mantém a singeleza de uma comédia de situações que adiciona o impacto da presença de uma menina de cinco anos na rotina de Durval e Carmita. Então, o ritmo se acelera, mas ainda com uma batida que permite um tempo de contemplação, para os dois adultos se adaptarem e gostarem da presença da recém-chegada. Assim, eles preparam refeições, escovam os dentes, contam histórias para dormir, compram presentes e tentam agradar à paixão da garota por cavalos. À medida que o tempo passa e a revelação sobre a verdadeira identidade de Kiki acontece, o lado B se torna o antônimo das faixas anteriores e a sensação de movimento musical abraça a sucessão de desastres. A descoberta de um crime se transforma na prática de outro, a escala de absurdo cresce, as tentativas de contactar a polícia sempre falham e a simples saída da casa se torna uma tarefa impossível. O humor não está mais na nostalgia ou na entrada de uma nova personagem, mas no surrealismo das reviravoltas mais inesperadas.
Mesmo que a comédia musical tenha se aberto para a série de desastres em uma situação que foge ao controle, o princípio de movimento não desaparece. No lado B, ele ganha um caráter tragicômico de tensão crescente. Anna Muylaert equilibra muito bem o trágico e o cômico a partir da trilha sonora, que deixa de ser composta por canções agradáveis e reconhecíveis da MPB para ser uma criação instrumental de André Abujamra. O compositor cria notas tensas de suspense que complementam o estado de espírito de Durval conforme os problemas se avolumam e ele não consegue dar uma solução a tudo que cerca Kiki. Um exemplo poderosíssimo é a cena que a diretora constrói envolvendo um corpo deitado na cama, um cavalo dentro do quarto, uma senhora arrumando o armário e uma menina vestida de bailarina pintando uma parede com sangue. Em meio a um turbilhão de eventos absurdos que escalonam praticamente sem limites, o protagonista se sente impotente e incapaz de respirar aliviado, o que transparece no design sonoro que se assemelha aos batimentos cardíacos frenéticos de quem está sob intensa pressão.
De uma forma ou de outra, todos os personagens estão aprisionados às contradições do amor. Por si só, este sentimento não insinua que aquele que ama poderia sofrer tanto assim. Entretanto, o esforço de manter o amor sob uma redoma fixa, controlada e sem transformações pode gerar uma dor profunda. Ary França mostra que Durval sofre por amar um tempo que já passou e não pode ser preservado por completo, tanto em termos musicais quanto em termos da relação quase infantil com a mãe. Etty Fraser evidencia que Carmita pode expor grande vulnerabilidade ao não poder expressar seu amor materno pelo tempo que deseja. Já Isabela Guasco pode fazer Kiki ser na aparência apenas uma menina ingênua que age conforme a idade, mas também pode evocar o quanto a ausência de um amor familiar pode se transferir para uma paixão por cavalos.
Embora Elisabeth, Célia e Carmita também sejam afetadas pela comédia musical de desastres, quem está, de fato, no olho do furacão é Durval. A sensação de não conseguir respirar nem lidar com as ameaças que se colocam em sua vida até então pacata advém da interação entre os lados A e B do disco de vinil que se tornou sua existência. A Durval Discos parecia ser o local de maior conforto para ele, as canções dos LPs pareciam ser a melhor experiência possível, as relações conhecidas com as outras pessoas de seu cotidiano poderiam ser as mais amistosas e a comédia de nostalgia do dia a dia comum deixaria todos confortáveis. No entanto, este é o lado A. O lado B faz a loja/casa se converter em uma espécie de prisão, as músicas cedem espaço para um desenho sonoro tenso, a chegada de personagens desconhecidos abala o ambiente familiar e a comédia se transforma em uma tragicomédia surrealista. Até no momento em que Durval consegue enfim respirar, a sequência final o lembra que o tempo passou, a agulha mudou de faixa e a nova trilha pode não ser tão prazerosa.
Um resultado de todos os filmes que já viu.