“O PEQUENO CORPO” – Aprisionamento dentro de si
O domínio sobre o próprio corpo deve superar qualquer forma de autoafirmação. Primitivo, talvez, em sua essência, mas nem por isso menos primordial, e tão pouco universalizado como inocentemente se pode pensar. A objetificação feminina perdura como mazela até hoje, reduzindo mulheres a papéis biológicos e imperando padrões estéticos de forte estigmatização social. Ainda que remonte à Itália de 1900, O PEQUENO CORPO reconhece uma problemática bastante contemporânea, aliando uma necessária discussão a uma crua jornada de libertação corporal.
Após uma lúdica cerimônia em águas marítimas, é chegada a esperada hora de Agata dar luz a sua filha. Quando a criança nasce natimorta, entretanto, a moça se vê impedida de batiza-lá, subjugada pelos costumes de sua comunidade local. Ao descobrir sobre uma vila longínqua com o suposto hábito de ressuscitar bebês, ela desafia todas as suas visões de mundo e resolve partir em uma árdua viagem.
Segmentado por extensos planos sequência, é fundamental acompanhar como o filme encabeça o manejar dos corpos por através de sua trajetória. Optando por um meio termo entre a estabilização e o livre fluir da câmera, a diretora Laura Samani incorpora esse lugar de incerteza aos movimentos, perdido entre a potência de uma emancipação e as redutoras rédeas de um mundo cruel.
Chama a atenção como, nesse sentido, o desenvolvimento de Ágata se submete a uma lógica de crueza, ainda que isso não diminua a empatia nutrida pela cineasta. Vagando, e muitas vezes sem rumo, por essa trajetória tão literal quanto subjetiva, a protagonista tem seus traços adicionados pela maneira como percebe o microcosmos ao seu redor e, especialmente, como sobrevive à percepção dos outros.
A ideia é a de uma espécie de ressignificação do conflito por ela ali vivenciado. Ao reivindicar para si o mero direito de dar nome à própria continuidade, Ágata tenta impor os limites sobre a própria determinação física, se declarar dona do próprio corpo. Aqueles com quem se depara durante a viagem tentam reduzi-la de diversas formas, e são nas reações brutais de Celeste Cescutti que vai se desenhando uma personagem carcomida pelos traumas de uma vida reduzida por rótulos de gênero.
Nesse processo, é interessante como o filme abre mão de um realismo inicial – ainda que preserve uma progressão do tempo, entre planos, pautada pela duração extensa das mesmas ações – e se permite flertar com uma atmosfera onírica. Ao perseguir a sua emancipação física, o projeto também procura uma conexão entre a protagonista e o meio ao seu redor. A decupagem – divisão do roteiro em imagens, enquadramentos – passa a se dedicar aos dotes naturais das florestas cristalizadas, dos lagos cobertos de gelo, traduzindo uma reconciliação interna nesse diálogo com o meio ao redor.
Passagem particularmente marcante dentro desse viés está na ambientada em uma caverna, em que a luz oscilante da mesma, e o nervosismo de se mergulhar em um labirinto de incertezas e perigos, traduz justamente a áurea de Ágata, aprisionada dentro de seu próprio ser. A forma como ela ressurge de dentro da escuridão, ao final do trecho, traz uma espécie de relação primordial entre homem e mundo, que remete à própria origem e continuidade da espécie humana – papel historicamente concedido às mulheres – para questionar a inferiorização de uma personagem dotada de tanto poder simbólico.
Por dentro desse mesmo âmbito, é inegável a força que o filme também estabelece com a discussão religiosa, haja visto as crenças e superstições em que o imaginário coletivo daquelas personagens se vê embebido. Guiada pela crença no vilarejo que poderia trazer o seu conforto, Ágata se insere em uma jornada arduamente concreta e corporal. Surge assim uma dicotomia entre a literalidade desses trajetos e a simbologia metafísica que ressurge dos mesmos, inebriando a consciência de figuras desesperadas pela vontade de acreditar em algo.
A maneira como esse mesmo conjunto de fé aprisiona a figura central, decretando a sua filha como um mero corpo abjeto, indigno de sequer ser batizado, entretanto, é igualmente uma força opressora do projeto. É como se Agata realmente não tivesse escapatória, perdida dentro de sua dimensão corpórea e aprisionada em um sistema de consciência projetado para si.
Do início que acompanha um ritual de abertura, em que a individualidade de Agata é suprimida por uma tradição coletiva que antecede a tragédia, a angustiante passagem em que a personagem mergulha em um lago gélido, “O pequeno corpo” se faz na dicotomia entre o registro analítico de um corpo a beira do colapso e a ressignificação lúdica que tenta extrair para si. Mesmo que se permita utilizar o poético em algumas sequências, fica marcada a objetividade dos momentos mais crus dessa jornada de autodeterminação. Surge assim um belíssimo conto sobre o aprisionamento dentro do próprio ser, e que registra a potência de se lutar pela própria liberdade e reconhecimento além do objeto.