“VAI E VEM” – Registros de resistência
Todo contexto histórico influencia na construção dos temas e das linguagens da arte. Desde a expansão da pandemia do covid-19 pelo mundo em 2020, o cinema formulou uma estética do isolamento mediada pelo uso de telas. Gêneros cinematográficos diversos registraram os acontecimentos, as sensações e as apreensões de um período muito recente da história. Nesse cenário, VAI E VEM é um documentário que capta o período entre abril de 2020 e início de 2021 a partir dos olhares de duas artistas, pensando em formas de resistência política, artística e identitária.
As artistas em questão são as diretoras Fernanda Pessoa e Chica Barbosa. A primeira é brasileira e mora em São Paulo, já a segunda é mexicana e vive nos EUA. Elas se correspondem através de vídeos-cartas em uma narrativa chamada de diálogos fílmicos, além de seguirem algumas regras: precisam responder à amiga em um intervalo de três semanas e criar gravações com base em cineastas de filmes experimentais. Ao longo das conversas, medos, esperanças e preocupações relacionadas à política e à imigração ganham espaço, enquanto a questão da sororidade se desenvolve.
O tema que atravessa todo o documentário é a a radicalização política em torno da ascensão de Jair Bolsonaro e Donald Trump, mas sob o viés da necessidade de resistir contra eles. As primeiras referências dizem respeito aos absurdos praticados pelos presidentes extremistas durante a pandemia, como a formação de aglomerações sem o uso de máscara e a transferência incorreta de auxílios financeiros para grandes empresas. No decorrer da narrativa, as duas diretoras se interessam cada vez mais em apresentar movimentos de resistência contra a extrema direita. No Brasil, o movimento feminista aparece nas ruas se expressando em favor da igualdade de gênero e, nos EUA, o Black Lives Matter toma conta de grandes centros urbanos em protesto contra a violência policial. E a luta política é retratada de modo crítico, como se percebe na ironia feita por Fernanda Pessoa em relação à crença comum de sempre esperar grandes melhorias no Ano Novo ser seguida pela percepção de que Bolsonaro continuava presidente em 2021 e a pandemia ainda não havia passado.
Chica Barbosa e Fernanda Pessoa já dirigiram projetos que apresentavam abordagens criativas para o documentário. A realizadora mexicana já filmou produções de teor musical, como “Madrigal para um poeta vivo“, e a brasileira já tratou das pornochanchadas do país durante a ditadura civil-militar em “Histórias que nosso cinema (não) contava”, ambas tendo uma montagem expressiva fora de um modelo convencional. Quando as duas diretoras constroem em dupla seu novo trabalho, a construção fílmica acompanha a ideia de documentar a realidade ao redor em sintonia com suas próprias experiências pessoais. A dupla combina registros da época com narrações em voice over em tom íntimo feitas por elas mesmas, sendo tanto áudios de Jair Bolsonaro ridicularizando o alto número de vítimas da pandemia quanto imagens de Donald Trump agindo em manifestações contrárias à democracia. Nesses momentos, tais arquivos são exibidos com narrações das documentaristas sobre os temores de presenciar formas diversas de preconceito e de violência ou com ilustrações gráficas das palavras trocadas entre as amigas nas correspondências visuais.
Em termos temáticos, a obra também aborda a resistência que pode ser feita pela arte. Não se trata, necessariamente, de pensar a arte como uma expressão diretamente política, mas de um instrumento renovado e original para refletir sobre o mundo. Fernanda Pessoa e Chica Barbosa escolhem não se comunicar através dos aplicativos tecnológicos mais recorrentes em tempos de isolamento social, como o Zoom. Na concepção de ambas, as reuniões virtuais possibilitadas por ferramentas assim esvaziam a espontaneidade da comunicação e colocam limites para as possibilidades de representação de suas visões de mundo e emoções. A satisfação das suas necessidades vem, então, através de uma espécie de correspondência que se assemelha a uma carta tradicional, a um vídeo ensaio e a um filme experimental. Além disso, o documentário igualmente entende a criação artística fora dos parâmetros comerciais e clássicos de Hollywood dentro de um senso de complexidade significativo. Chica Barbosa não se curva aos padrões hollywoodianos, mas aparece em performances variadas tendo o letreiro de Hollywood atrás, por exemplo, engolindo metaforicamente a indústria estadunidense.
Quando as sequências e a troca de vídeos-cartas enfocam o poder da arte em si como produtora de leituras de mundo, as diretoras evidenciam ainda mais as inspirações nas cineastas de produções experimentais. Nomes como Paula Gaitán, Abigail Child, Carolee Schneemann, Cheryl Dunye, Chick Strand e Yvonne Rainer são diretamente citadas como referências para a construção do diálogo fílmico. Se a palavra chave para criar a narrativa é resistência, o documentário também incorpora a noção para a definição de uma estética particular. Fernanda Pessoa e Chica Barbosa transitam por escolhas formais variadas, desde as tradicionais até aquelas mais disruptivas. A linguagem clássica dos documentários baseados em entrevistas, a captação de imagens a partir de câmeras modernas ou de tipos distintos de celulares, a construção de texturas variadas para a imagem, o uso de alegorias visuais, uma montagem dialética pelo choque entre os planos, a colagem de ilustrações com sentidos múltiplos e a criação de imagens abstratas são alguns recursos empregados nesse universo estilístico.
À medida que os meses se passam, o isolamento social prossegue e a radicalização política de lideranças extremistas se amplia, as lutas sociais tratam do lugar da mulher em um cenário tão adverso. Muitas temáticas atravessam a questão feminina na América Latina e nos EUA: a sororidade entre artistas que se inspiram e valorizam o trabalho de outras mulheres, e entre amigas que se ajudam em meio a uma condição de opressão estrutural; o enfrentamento do machismo enraizado na sociedade nas ações comuns do dia a dia e em protestos organizados; e a apresentação de pautas específicas, sobretudo, em relação ao corpo, como se observa na menção à comemoração na Argentina da legalização do aborto. A discussão sobre o corpo ganha significados flexíveis, pois pode simbolizar a luta pela liberdade feminina (como os momentos em que Chica Barbosa conversa com amigas sobre o prazer feminino), a reafirmação do valor da vida em tempos de pandemia, a fluidez das definições de identidade e a reconstrução estética da narrativa.
Resistência pode significar o embate político contra ameaças concretas, a reelaboração dos sentidos da arte e a luta feminista pelo direito à existência digna. Todas as possibilidades podem ser registradas por diferentes mecanismos de um documentário que reconhece sua subjetividade e as técnicas ficcionais de outras abordagens. A troca de correspondências virtuais entre Fernanda Pessoa e Chica Barbosa pode não ser algo absolutamente original e inédito no cinema, porém a utilização desse formato narrativo pelas cineastas encontra seu próprio valor artístico. Em geral, os filmes de estética pandêmica costumam ser vistos como datados, sendo encarados como projetos que tem sua experiência muito dependente do contexto da pandemia e não se sustentariam por mais tempo. No entanto, “Vai e vem” é um registro de época que não precisa estar totalmente submisso a um momento histórico específico. A partir do documentário, política, arte, corpo e liberdade se unem em nome da importância da resistência.
Um resultado de todos os filmes que já viu.