“A SOMBRA DE CARAVAGGIO” – Sombra de uma cinebiografia [FCI 2023]
Michelangelo Merisi, mais conhecido como Caravaggio, foi um pintor italiano entre 1593 e 1610. Em obras como “Medusa“, “Davi com a cabeça” e “Narciso“, ele marcou seu nome no estilo barroco com temas religiosos e mitológicos. Ao invés de receber os louros por seu talento artístico, foi perseguido pela Igreja Católica por conta de trabalhos nada ortodoxos para o conservadorismo da época. Este é o personagem representado na cinebiografia A SOMBRA DE CARAVAGGIO, que faz um recorte da vida do artista através de uma abordagem pouco comum embora nem sempre eficiente para a construção cinematográfica.
Ambientado em 1609, o filme acompanha as contradições e os tormentos interiores de Caravaggio. Retratado como um pintor rebelde e inquieto, ele aguarda o perdão do papa para escapar de uma sentença de morte imposta após o assassinato de outro homem. Enquanto a decisão papal não é definida, o artista encontra refúgio na família Colonna de aristocratas italianos em Nápoles. Ao mesmo tempo, as criações transgressoras são examinadas por Sombra, funcionário da Igreja Católica a serviço do papa.
Como a própria sinopse já indica, o diretor Michele Placido não tenta criar uma cinebiografia tradicional que teria a pretensão de retratar a vida do biografado em sua totalidade. Além de fazer um recorte específico, o período em que corre o risco de ser condenado à morte pela Igreja, a narrativa se desenvolve, sobretudo, a partir do ponto de vista de Sombra. O funcionário eclesiástico percorre a Itália interrogando pessoas que tiveram relação com Caravaggio (nobres, religiosos, outros artistas…), construindo, então, uma representação indireta de quem foi o protagonista a partir das versões de terceiros. Do ponto de vista intelectual, é um recurso interessante para dar conta das limitações inerentes a qualquer obra biográfica, mas tem armadilhas em termos cinematográficos. De início, é uma técnica que tem um valor original próprio. Com o passar do tempo, a estratégia se torna repetitiva, um padrão que aprisiona o próprio filme e deixa o espectador refém de uma estrutura que não consegue encontrar nuances.
O personagem principal também sofre com esta escolha criativa. Em muitas sequências, não observamos Caravaggio por si mesmo, apenas pelas representações feitas por outras pessoas. Não se trata de pensar o olhar do protagonista como mais verdadeiro, mas de reconhecer as idealizações positivas ou negativas criadas por aqueles que conviveram com ele. Como consequência, Riccardo Scamarcio opera dentro da contradição de ter que criar um artista transgressor e atormentado em seu contexto histórico sem contar com tantos momentos para dar vazão para a dimensão íntima do personagem. É possível perceber certas características de seu trabalho, de sua visão de mundo ou de sua concepção de arte, apesar de nem sempre o ator estar no centro da cena por tempo considerável. Assim, o pintor compreende a pintura como algo que pode registrar o mundo de maneira complexa com suas belezas e imperfeições, o ofício artístico como um exercício de liberdade e a representação visual como uma produção atenta aos paradoxos de sua época. No entanto, não temos a possibilidade de vislumbrar tão bem as emoções de Caravaggio em torno de cada uma dessas visões.
Paralelamente, os demais personagens e atores igualmente enfrentam dificuldades semelhantes. Sombra e Constanza são bons parâmetros de figuras que deveriam ser importantes no arco do protagonista, mas estão distanciados dos espectadores e das sensações pretendidas no conflito central. O funcionário da Igreja Católica funciona como um antagonista que contrapõe o desejo de liberdade criativa do pintor com a ortodoxia conservadora de uma instituição monopolizadora da verdade, embora sua presença em cena também se reduza a outro padrão repetitivo. Louis Garrel faz este homem ser absolutamente frio, austero e rígido na forma de pensar e de se portar sem adicionar tantos elementos complexos e distintos dessa imagem (a sequência final flerta com um nível de complexidade maior ao dar a ele a chance de revelar traços contraditórios na presença de Caravaggio, mas é um momento pontual e efêmero). Já Isabelle Huppert cria uma mulher da nobreza que se envolve com o artista não apenas pelo gosto artístico, já que passa a nutrir sentimentos por ele apesar de a atriz não ter tantas oportunidades de construir gradualmente este envolvimento.
Em cinebiografias de figuras históricas, é relevante também considerar a reconstituição histórica. Este trabalho bebe da influência de uma cinebiografia que se constrói sob um recorte específico e a partir das perspectivas de outros indivíduos, logo opera sob bases próprias e fora de qualquer cartilha do que deveria ser. Em tese, seria possível pensar que uma cinebiografia sobre Caravaggio deveria valorizar a construção dos cenários da Itália do século XVII e a composição de figurinos, maquiagem e cabelo da época. Na prática, a ideia do diretor não é investir tanta atenção nesses elementos, mirando a câmera para destacá-los. Ainda que todos os pontos anteriores sejam funcionais para levar o público àquele universo, o interesse maior está na tradução visual de algumas características estéticas das pinturas do protagonista. Boa parte de seus quadros se baseia no uso de sombras e de cores escuras no fundo, o que leva Michele Placido a filmar ambientes internos sob uma iluminação sombria ou um contraste expressivo entre luzes externas (ou pequenas fontes de luz naquele espaço) e sombras dentro do cenário.
A reconstituição histórica particular é o aspecto mais interessante do filme e prossegue sendo assim ao estabelecer o cenário político-social do século XVII. Por um lado, pode fazer falta menções explícitas à epidemia da peste negra na Europa e ao avanço do barroco em contraposição ao Renascimento. Não se trata de ignorar completamente os dois eventos históricos, pois em algumas sequências estão presentes quando Caravaggio passa por uma área de enfermos e religiosos demonstram suas predileções artísticas. No caso, a narrativa localiza rapidamente tais fatos e avança para as questões da desigualdade social e do preconceito em uma sociedade aristocrática. Como o artista se inspira em prostitutas, criminosos, pessoas em situação de rua e grupos mais pobres para criar personagens bíblicos, a Igreja Católica rejeita suas obras e as considera perigosas. Enquanto o clero condena aqueles quadros como heresia, Caravaggio lança um olhar afetuoso e valorizador para os excluídos e marginalizados.
De modo geral, “A sombra de Caravaggio” aposta em uma cinebiografia que não quer ser linear nem totalizadora do biografado. Não pretende reconstituir passo a passo, detalhe por detalhe quem foi Michelangelo Merisi do nascimento à morte e como este se relacionou com seu tempo. Nesse sentido, algumas escolhas formais funcionam, como a reconstituição de época a partir do estilo de seus quadros e da abordagem temática feita por ele. Outras decisões não tem o mesmo impacto, como a estrutura de acompanhar Sombra interrogando diferentes pessoas e recuar no tempo para mostrar flashbacks desses relatos. Este elementos comprometem a fluidez da narrativa, que constantemente avança e retrocede na cronologia e afeta a dimensão íntima dos personagens. É como se não conseguíssemos superar algumas barreiras para conhecer os personagens e a sensação de superficialidade domine as relações entre eles e o impacto no público. Exemplo disso é a sequência final, teoricamente um confronto que mobilizaria emoções intensas e desdobramentos interessantes, mas que se encerra dando a entender o que gostaria de provocar sem atingir plenamente seu objetivo.
* Filme assistido durante a cobertura do Festival de Cinema Italiano 2023.
Um resultado de todos os filmes que já viu.