“A ÚLTIMA NOITE DE AMORE” – Dilema moral e reconfiguração narrativa [FCI 2023]
As últimas horas antes de largar o trabalho policial não costumam ser simples no cinema. Pode ser toda a carreira como em “Seven: Os sete crimes capitais” ou apenas um dia da rotina profissional como em “16 quadras“. Do outro lado da justiça, os problemas também aparecem quando criminosos tentam deixar a vida de delitos como em “O pagamento final“. De alguma forma, estas abordagens se encontram em A ÚLTIMA NOITE DE AMORE, um thriller que coloca em xeque a moralidade do protagonista e confere diferentes possibilidades narrativas para sequências específicas.
Franco Amore é um tenente da polícia que se orgulha de dizer que sempre procurou ser honesto e nunca precisou atirar em alguém. Após trinta e cinco anos de carreira, ele chega à véspera de sua aposentadoria escrevendo o discurso de despedida para os colegas. Contrariando suas expectativas, a última noite de serviço parece mais longa e difícil do que todas as outras ao ser confrontado com uma série de incidentes que deixa sob ameaça seu trabalho, a amizade com Dino, o amor da esposa Viviana e a própria vida.
Em boa parte da primeira hora do filme, a narrativa se desenvolve em um um ritmo vagaroso que pode afastar alguns espectadores. Entretanto, há sentidos possíveis para essa escolha. O diretor Andrea Di Stefano apresenta as relações entre os principais personagens e contextualiza o momento da vida de Amore, partindo da chegada do policial a uma festa surpresa em seu apartamento preparada pela esposa. O protagonista interage animadamente com os colegas e atua em uma segunda ocupação que, em teoria, a polícia não aceitaria: trabalhar como motorista para Cosimo, primo de Viviana. Este segundo emprego o leva a receber uma oferta tentadora e misteriosa de chineses que precisam de alguém para transportar as mercadorias de seus negócios. Por mais que garantam que não haveria nada ilegal nos serviços, Amore e o próprio público podem se sentir desconfiados. Embora o desenrolar da produção justifique esse início, alguns trechos podem soar deslocados, como a longa câmera aérea sobrevoando as ruas de Milão até chegar ao prédio da festa surpresa.
Passado o período inicial de apresentação, a dramaturgia pretendida pelo cineasta pode tomar forma clara. É o que ocorre quando Amore e Dino recebem e transportam um casal oriental que carrega uma bolsa de conteúdo desconhecido. A construção de toda a sequência inspira dúvidas e tensão desde o instante em que se encontram com os passageiros. No trajeto, Andrea Di Stefano amplia o suspense ao acompanhar o deslocamento dos quatro personagens pela cidade até um túnel passando a sensação de que algo inesperado pode acontecer. A trilha sonora se inicia com ruídos que remetem a uma respiração ofegante e se transforma em uma composição crescentemente tensa; ao mesmo tempo, a decupagem alterna entre planos abertos que estabelecem a geografia da cena e planos fechados que captam as emoções de todos dentro do carro. As transições entre os planos que mostram o que está no quadro e outros que sugerem o que está fora do quadro e influencia os acontecimentos ajudam a preparar o terreno para uma tragédia. Esta resolução gera algumas transformações no modo de contar a trama.
A sequência no carro impacta na organização da narrativa. No princípio, o público entra no universo diegético a partir da técnica do in media res, que o leva para dentro da ação imediatamente. O filme utiliza o recurso, mas sem ter o interesse de iniciar na cena mais tensa possível para conquistar o interesse. O objetivo é dar a entender que a abertura teria determinado sentido e, tempos depois, colocar em risco as primeiras impressões formuladas. Inicialmente, a festa surpresa, a dinâmica dos convidados, a chegada de Amore e a demonstração de emoções por parte do policial sugerem que esses eventos seriam inocentes, realmente inesperados e fruto da comoção do protagonista pelas homenagens prestadas. Após a tragédia no túnel, a narrativa retoma a cronologia linear e se conecta com o momento futuro apresentado na abertura para recontextualizá-lo. A surpresa pode estar em outras questões e não na festa, a relação entre os personagens pode estar mais aflita do que parecia e os sentimentos em jogo se revelam mais dramáticos, sobretudo no que se refere a uma criança presente no apartamento.
Recontextualizar o que era visto até então significa dar novas nuances aos acontecimentos e às suas implicações. É possível esconder o que houve? Quais eram as motivações dos personagens envolvidos no tiroteio no túnel? O que acontecerá se a polícia descobrir tudo que aconteceu? Qual será a reação dos chineses ao tomarem conhecimento das falhas no serviço? Tais perguntas afetam a percepção de quem Amore está se tornando, afinal se os sentidos da narrativa se transformam o mesmo pode ocorrer com a imagem do protagonista. O homem que se orgulhava de ser íntegro, absolutamente correto em suas obrigações e pacífico em toda a carreira é desafiado por dilemas que fazem transparecer ambiguidades antes não percebidas. Pierfrancesco Favino dá vida a um personagem que parte de uma condição quase irretocável, na qual reconhece o valor de trinta e cinco anos de carreira e se preocupa com um futuro profissional honesto, e chega a um estágio em que precisa pensar mais em si mesmo e na família, inclusive podendo cometer atos moralmente questionáveis.
O dilema moral que atinge o policial é representado por outra sequência específica. A descoberta da cena do crime no túnel mobiliza diversos departamentos da polícia para esclarecer o que houve e constrói um momento expressivo situado em uma única locação. A investigação produz algumas subtramas e em todas elas Amore é retirado de sua zona de conforto: estar sob o risco de uma retaliação dos chineses, sofrer com o peso de uma perda dolorosa, suspeitar dos próprios colegas de corporação e planejar outra vida ao lado de Viviana. O grande mérito de Andrea Di Stefano é fazer toda a sequência ser movimentada constantemente por conflitos e alterações nos rumos dramáticos dos personagens. Sendo assim, os detetives investigam, alguns homens apresentam um comportamento corrupto, os criminosos ameaçam quem se coloca como obstáculo ao seus interesses e muitos personagens buscam a bolsa perdida no local. Ao redor de tudo isso, Amore e Pierfrancesco Favino são impelidos a lidar com dúvidas, medos, dores, preocupações e indignação crescente.
“A última noite de Amore” consegue, então, combinar as viradas da narrativa e o desenvolvimento do protagonista. Se a recontextualização da sequência de abertura e os momentos posteriores de tensão retiram Amore da armadilha de ser visto como perfeito, a reviravolta do desfecho escancara a dubiedade de um policial prestes a se aposentar. A revelação de um esquema pensado para explorar cinicamente uma qualidade do personagem principal desencadeia o último ponto da sua evolução dramática. Ao longo de sua carreira, ele pode não ter sido corrupto, porém a simplicidade moral também não cabe e cobra um preço a qualquer momento. Mesmo que os últimos segundo sejam muito abruptos e pareçam sugerir algum fundo moral ainda mais complexo, o clímax já é suficientemente interessante para propor a desconstrução de um homem que pode pensar mais em si mesmo para enfrentar o que cai sobre ele.
* Filme assistido durante a cobertura do Festival de Cinema Italiano 2023.
Um resultado de todos os filmes que já viu.