“A ÚLTIMA VEZ QUE FOMOS CRIANÇAS” – Sobriedade revestida por inocência [FCI 2023]
Não é de hoje que o cinema italiano decide se aventurar por suas próprias memórias. A desconexão entre uma temporalidade realista e a progressão onírica desses retornos foi muita explorada no cinema de Fellini, por exemplo, reconhecido por suas narrativas fantasiosas e regidas pelo fluxo de consciências subjetivas. Por mais que não siga – e sequer tenha a pretensão de fazê-lo – esse mesmo afinamento lúdico em seu acabamento, é interessante como A ÚLTIMA VEZ QUE FOMOS CRIANÇAS caracteriza esse fazer, traçando uma jornada pelos temores da Segunda Guerra Mundial que é contornada pela inocência dos olhares da infância.
Assombrados pelo desaparecimento de um amigo judeu, Ricardo, que descobrem ter sido levado para um campo terrível sobre o qual entendem muito pouco, os valentes Ítalo, Cosimo e Vanda resolvem resgatar o indefeso colega com as próprias mãos. Juntos, eles partem em um longa jornada através dos trilhos de uma ferrovia, rumando em direção ao ato heróico enquanto são perseguidos por uma freira e pelo irmão mais velho de Ítalo.
Por mais que essa atmosfera não seja particularmente inovadora, uma das primeiras menções vale a ser sobre a maneira como a direção estabelece o equilíbrio entre a evidente ingenuidade da premissa e a brutalidade de uma Itália afundada pela epícume do regime fascista. Pautada pela força invariável do trio de jovens, a câmera preserva bastante do que é visualmente revelado, guiando uma construção de mundo que não se interessa pela mesma construção didática de outros projetos históricos.
Não que isso queira significar a ausência de um discurso maior de conscientização sobre as problemáticas daquele período histórico. A direção de Claudio Bisio se responsabiliza por essas finalidades, mas é na manutenção da fidelidade ao ponto de vista das crianças que encontra o seu diferencial. Os horrores da guerra parecem sempre distantes da áurea impenetrável dos três protagonistas, cuja crença uns nos outros parece superar as colunas de fumaça e ler com outras perspectivas os males que parecem lhes ameaçar.
É como se o diretor manifestasse uma dissociação entre a leveza de sua lente – que configura os espaços sempre pela lógica da movimentação dos atores mirins, livres e dinâmicos para preencher o quadro a sua própria maneira – e a dor da guerra, reservada ao segundo plano inclusive nos planos mais longos.
Se por um lado isso pode higienizar, até certa instância – visto que eventualmente algumas durezas sempre acabam por alcançá-los – é no teor cômico que essas passagens oferecem que emergem os comentários mais saguazes.
Exemplo disso se encontra na figura de Ítalo, interpretado pelo carismático Vincenzo Sebastiani, menino inseguro que se convence da necessidade de impressionar a família pela performance de bom fascista. A forma como ele visualiza essa ideologia de dominação expõe com todas as letras a sua ridicularidade, e indica a intenção oposta do roteiro também assinado por Claudio. Outra evidência dessa ironia bem pontuada se revela na construção da jovem freira, Agnese (Mariana Fontanna), cujas noções de moral e religião são desafiadas durante a viagem ao lado de Vittorio (Federico Cesari), irmão de Ítalo.
São interações como essas que suspendem noções exatas do que um limitado sistema consideraria certo ou errado. E com isso em mente, existe um pleno diálogo entre a disposição desses desenvolvimentos de personagem e a estrutura geral da memória, evidenciada ao final em uma outra linha narrativa. Isso porque, por mais que a montagem estruture uma progressão tradicional, com uma lógica convencional de causa e efeito guiando a história da travessia como um todo, são muitas as formas pela qual o tempo é dilatado.
Do andamento não naturalista da linha temporal do filme, que parece se estender para abrigar a maior quantidade de atividades lúdicas, da parte das crianças, possível, ao adiamento incessante de uma fim duro e inevitável – e que parece tão evidente, no aparente destino de Ricardo, quanto distante da pureza das crianças -, tudo ali aponta para um lugar íntimo que poderia apenas ser acessado de maneira particular.
Dessa forma, tem-se em “A última vez que fomos crianças“, potencialmente inspirado pela trajetória de parentes do diretor, o casamento entre uma temática abrangente e uma abordagem íntima, respeitosa na maneira como preserva a ótica daquelas três crianças. Ainda que o filme não desafie, exatamente, a natureza de suas próprias imagens, são notáveis as diferenças reveladas em seu andamentos, definindo um filme que igualmente crê na necessidade de se reviver as passagens mais sombrias da história e na urgência de se fabular através da imagem em movimento.