“ZONA DE INTERESSE” – Mal banal e perturbador [47 MICSP]
O que ZONA DE INTERESSE demonstra é que é preciso refletir sobre os próprios atos, mesmo quando se está inserido em um contexto institucional em que, para agir, essa reflexão é desnecessária. O filme se apropria da conhecida expressão “banalidade do mal”, de Hannah Arendt, para, de maneira até mesmo didática, transmitir ao espectador o quanto o mal banal pode ser perturbador.
O comandante de Auschwitz Rudolf Höss, sua esposa, Hedwig, e seus filhos apreciam uma vida tranquila em um cenário bucólico – quiçá a vida dos sonhos para a família. O sonho de alguns está ao lado do pesadelo de muitos: a casa em que moram está ao lado de um campo de concentração.
Há certa lentidão no filme de Jonathan Glazer, fruto de seu intento de oportunizar ao espectador absorver aquilo que está sendo exposto. Os primeiros minutos criam expectativa à medida que o título do filme escurece lentamente até desaparecer e, mesmo quando isso ocorre, as imagens demoram para surgir para ilustrar os sons intradiegéticos. Mais adiante, quando Rudolf (interpretado por um pacato Christian Friedel, combinando com a proposta) tranca as portas e apaga as luzes de casa, novamente a cena se protrai. A ideia, evidentemente, não é de contemplação em momento algum, mas de imersão na banalidade do mal.
Hannah Arendt foi a filósofa que criou essa expressão, em seu livro “Eichmann em Jerusalém”, quando acompanhou o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto. De acordo com ela (e de maneira resumidíssima, é claro), tanto ele quanto os demais envolvidos não eram obrigatoriamente malignos ao conduzir o genocídio nazista, praticando, na verdade, um mal banal. Os nazistas que trabalhavam para Hitler eram na realidade burocratas que atuavam seguindo ordens sem refletir sobre as consequências das suas obedientes condutas. Ou seja, eles não necessariamente tinham um desvio psicológico voltado à maldade, mas reproduziam a perversidade nazista por força da submissão ao regime. Não eram pessoas, como se sabe, dispostas a enfrentar as ideias maléficas, não as enfrentando justamente porque não refletiam a seu respeito, simplesmente agiam.
A ideia de Arendt é que pessoas comuns, em determinados contextos, podem perpetrar atos monstruosos sem considerar a monstruosidade desses atos. Isso significa que, mesmo quando elas não tenham intenções maléficas, o cumprimento irrefletido de comandos pode torná-las cúmplices do mal. Logo, diante da possibilidade de situações que podem levar a atos moralmente condenáveis, a banalidade do mal serve para indicar a imperiosidade de um patrulhamento constante, prezando pela moralidade.
O texto escrito por Glazer a partir do livro de Martin Amis tem a banalidade do mal como fio condutor. Rudolf jamais revela um pensamento sobre os desdobramentos da sua conduta enquanto comandante nazista. Isso não significa que ele é uma pessoa desumana, pelo contrário, ele é bastante gentil com a sua família, compartilhando momentos de diversão (passeio de canoa) e afeto (lendo “O patinho feio” e “João e Maria” para as filhas). O fato de ser um oficial dedicado e competente é o que o conduz ao mal, não necessariamente a sua natureza.
Glazer expõe a banalidade do mal a partir da vida da família, uma vida comum (piquenique no bosque, bolo de aniversário etc.) em um cenário bucólico (como demonstrado nos minutos iniciais e no longo travelling no jardim exibido por Hedwig) ao redor de uma casa luxuosa (empregadas, vários recintos). Nas palavras de Hedwig, interpretada por uma assustadoramente apática Sandra Hüller (note-se a diferença de empolgação entre o pedido de retornar ao spa italiano e a notícia do retorno do marido), eles estavam “vivendo a vida que sonharam, com tudo o que o Führer dizia”. Quando Hedwig menciona, por exemplo, as cortinas de uma mulher judia que gostaria de ter, não há um senso de humanidade sobre a mulher simplesmente porque ela não pensa sobre isso. O mal se torna banal em todo o contexto familiar, como quando Claus (Johann Karthaus) maltrata o irmão menor, o que pode ser tanto uma brincadeira quanto um sadismo naturalizado.
Para não perder a força do tema, Glazer cria uma narrativa paralela e usa o design de som, ao invés de imagens explícitas (salvo os altos muros que cercam a casa, cuja literalidade tem alto poder metafórico). Aquela, para comover; este, para perturbar. O que motiva os gritos, por exemplo, não aparece, mas eles são ouvidos. Simbolicamente, o campo fica integralmente vermelho, para depois retornar à família e seu mundo comum, onde o mal é banal. Quase não há músicas extradiegéticas, bastam os ruídos perturbadores. A fotografia verde (grama, o vestido de Hedwig) e marrom (os móveis) da primeira parte vai dando espaço para o vermelho (as flores) e o cinza (novo uniforme): o cenário bucólico oculta o sangue e as cinzas. A punch scene surpreende porque foge completamente do esperado, empregando um silêncio sufocante (com ruídos intradiegéticos extremamente desconfortáveis) e imagens nada menos que gritantes. Para não perder pujança, o desfecho é uma metáfora para um destino para Rudolf e seus colegas, esclarecendo que a banalidade não elide a perturbadora maldade.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.