“TIGER STRIPES” – Imaginação fértil demais [47 MICSP]
TIGER STRIPES é uma estranha alegoria sobre a puberdade feminina. Não há dúvida sobre os simbolismos adotados no longa, da menstruação às mudanças anatômicas do corpo da protagonista. O que causa estranheza é a progressão em direção a um realismo fantástico que, em parte, colide com a proposta inicial, representando uma imaginação exageradamente fértil.
Zaffan é a primeira da sua turma a menstruar. Seu corpo está passando por uma nova fase, o que é de difícil compreensão tanto para ela quanto, principalmente, para as demais. No entanto, para viver livre e plena como a mulher que começa a se tornar, ela precisa aceitar o que antes temia e, se necessário, enfrentar todos que a cercam.
A puberdade de Zaffan se apresenta de maneira literal e alegórica. Na primeira forma, é demonstrada pelo sutiã que passa a usar e pela cena em que menstrua na cama, chamando sua mãe. Mesmo nesses casos, pode haver algo simbólico, dado que o sutiã é objeto de inveja e imediata censura, ao passo que a menstruação é traduzida, através de montagem por associação, na cena da cachoeira (e que não é a única cena em que a água escorrendo simboliza a menstruação). Na forma alegórica, a puberdade reside nas transformações corporais, literais e fantásticas, sofridas por Zaffan.
É nisso que “Tiger stripes” se torna um filme divisivo. Certamente o realismo mágico a partir de uma premissa relativamente comum é uma opção ousada. Existe, porém, um conflito entre o real e o surreal no qual este ofusca aquele, prejudicando um pouco a mensagem do filme. Por exemplo, no design de som, há muitos ruídos intradiegéticos de animais, que incrementam a ambientação do espectador na floresta visitada por Zaffan e suas amigas – metáfora, inclusive, para a natureza que se impõe a ela na fase que está vivendo. Contudo, os efeitos visuais da transformação da protagonista estão em um extremo – além de serem de má qualidade – que causa profunda estranheza.
A diretora e roteirista Amanda Nell Eu acerta nos cenários, como nas cenas em banheiros (na escola e em casa), combinando com as questões íntimas tratadas, além da mencionada floresta. Quando decide tornar seu filme perturbador, porém, o excesso é bastante questionável. O som ganha ruídos extradiegéticos esquisitíssimos e as imagens são bastante incômodas (os planos-detalhe das mãos e dos pés). O realismo fantástico leva Zaffan ao animalesco manifesto, sem sutileza alguma, como se a puberdade transformasse a criança em um animal novo, um animal perigoso e raivoso. Assim, Zafreen Zairizal, intérprete da protagonista, aparece rangendo os dentes, berrando como se estivesse rugindo, se coçando, matando animais e com uma caracterização imageticamente cômica. Ou seja, o que era pensado como “meramente” perturbador transita na linha tênue compartilhada com o vergonhoso, gerando uma situação de desconforto, como pretendido, mas não pelas razões almejadas. É verdade que Nell Eu pretendia deixar o espectador desconfortável, todavia a bizarrice não parece ser o caminho mirado por ela para atingir tal fim.
Contextualmente, a realidade em que Zaffan vive é de segregação e humilhação. A primeira, porque as meninas são separadas entre veteranas e calouras, com aquelas usando um banheiro com exclusividade. A segunda, porque público e privado se mesclam com discursos repressivos feitos na frente de todos (a fala da professora, a briga da mãe fora de casa). Isso acontece bastante também pelo modo de ser de Zaffan, que é uma menina afeita a traquinagens com tudo, com todos e a todo momento. Já tematicamente, como mencionado, é a puberdade o pontapé inicial para a trama, dando a entender que a protagonista sofre discriminação em sua comunidade em razão da sua passagem por essa etapa da vida. É isso que ocorre tanto quanto não é isso que ocorre.
De fato, Zaffan é discriminada na escola pelo fato de estar à frente das colegas e ter de lidar com uma fase difícil de lidar para uma menina daquela idade naquela comunidade, onde um sutiã a rotula, nas palavras de Farah (Deena Ezral), como “piranha”. Contudo, a trajetória narrativa passa por uma transição para o supersticioso – sobretudo na menção à lenda de Ina e quando surge o dr. Rahim (Khairunazwan Rodzy) – para enfim chegar ao realismo mágico. Aqui, o fantástico é tão radical e distante do que havia até então que apaga o que foi elaborado antes. Rahim representa um falastrão engraçado que mantém tabus, porém o ritual que conduz é tão extravagante (ele mesmo é extravagante) que Nell Eu parece se esquecer do tema principal, a puberdade, para tratar de pseudociência e falsos messias. A mudança de foco temático, fruto de uma inegável criatividade, acaba sendo mais mortal que as garras de tigresa. A torpeza de Rahim acaba sendo maior que o crescimento solitário de Zaffan. A alegoria principal, por fim, é encoberta por uma subtrama que deveria ser muito menor.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.