“PEDÁGIO” – O deboche como escolha [47 MICSP]
“Carvão” e PEDÁGIO não se confundem. Apesar da mesma atriz protagonista e da mesma diretora e roteirista, enquanto o primeiro é composto por simbolismos, o segundo se baseia no escárnio e na estupidez explícita, quando não relativamente exagerada. Seria mesmo o deboche a melhor escolha para tratar de algo profundamente lamentável e dramático?
Suellen trabalha como cobradora de pedágio para sustentar sozinha seu filho adolescente, Antônio, o “Tiquinho”. As preferências femininas e os vídeos do garoto dublando jazz feminino dos anos 1940-1950 a incomodam, o que a motivam a buscar ajuda na igreja de Telma, sua colega. Para curar o filho, é necessário angariar um dinheiro que ela não possui, recorrendo a esquemas ilícitos em que Arauto, seu namorado, se envolve.
Com “Pedágio”, Carolina Markowicz reafirma alguns temas comuns de sua filmografia, notadamente a realidade dos brasileiros, em sentido amplo, o aparato financeiro da Igreja enquanto “ópio do povo”, e as relações familiares. Ao retratar o cenário nacional, a cineasta é sobretudo direta e verbal, fazendo com que uma personagem de menor relevância mencione a corrupção de pastores e políticos. Existe, também de maneira lateral, a denúncia de ambientes de trabalho tóxicos, seja pelos clientes atendidos, seja pelos colegas que se regozijam da suposta vergonha alheia. A toxicidade está também no meio ambiente, na medida em que a fotografia censura a poluição das chaminés das indústrias de Cubatão, o “Vale da Morte”. Em que pese sua preocupação com a contundência, Markowicz deixa passar minúcias como o “encaixe” conseguido por Suellen para Tiquinho, dado que, inicialmente, não haveria vaga no curso.
É na Igreja que está um dos pilares do longa, empregando o humor para escancarar a falsidade dos religiosos fervorosos e a imbecilidade das “curas”, dos “cursos” e das “terapias” de mudança de orientação sexual. Provavelmente a melhor do elenco, Aline Marta Maia compreende que Telma é a principal fonte de humor do filme, incorporando o estereótipo da evangélica alienada. A personagem demonstra ignorância ao falar que o curso do pastor Isac (Isac Graça) é baseado na ciência, mas também hipocrisia na comparação entre o que defende e a maneira como age. Telma é o delírio em pessoa, falando em homossexualidade como doença e vivendo em uma autêntica realidade paralela em que possivelmente acredita, de fato, que um “espírito toma conta da mulher depois dos 50 (anos)” e que o casamento é tão sério que “a gente não pode estragar com certas verdades”.
O retrato de Markowicz é, entretanto, caricatural ao extremo, de maneira desnecessária, inclusive generalizando um grupo. Falas como “o Exu arrenda o seu corpo até os 17 (anos), depois é usucapião” podem ser engraçadas, contudo a comédia, como elaborada, é incompatível com o tema. Em outras palavras, existem assuntos dificilmente conciliáveis com o humor em razão da seriedade com que precisam ser tratados. Não significa dizer que não é possível fazer piada, por exemplo, sobre suicídio, mas que esse caminho é muito difícil de ser trilhado e fácil de esvaziar a mensagem séria a respeito do tema. É o caso de “Pedágio”, que, ao debochar da lastimável religiosidade que lucra às custas de uma mentira (afinal, não há “cura” para algo que não é e jamais deve ser tratado como doença, a homossexualidade), torna opaca justamente a bandeira que levanta. Falando apenas para a “bolha” da razoabilidade (que tem consciência do absurdo), a obra deixa de dialogar com quem poderia deixar de ser irrazoável e, principalmente, ignora por completo o drama sofrido por aqueles submetidos à tortura da reorientação sexual. Rir de um assunto que por vezes leva a consequências trágicas não é saudável.
O terceiro tema comum na obra da diretora repousa nas relações familiares. É inteligente o modo como a homofobia sofrida por Tiquinho é praticamente restrita a quem está mais próximo, ignorando a homofobia estrutural e enfatizando o preconceito materno. Tiquinho é cativante pelo seu arco de enfrentamento e convicção (sobre o que é, o que gosta etc.), não pela atuação de Kauan Alvarenga. O jovem se esmera ao dublar Billie Holiday e Dinah Washington – e brilha, já que “It had to be you” e “Baby won’t you please come home” são fenomenais -, com trejeitos exagerados, todavia as sutilezas do drama de Tiquinho são negligenciadas com uma expressão imutável de descontentamento. Maeve Jinkings, repetindo a dupla com Markowicz, vive uma protagonista complexa, mas que parece anestesiada em algumas situações. Sua explosão com Arauto (Thomas Aquino), o estereótipo do “malandro”, é simplesmente anódina. Por outro lado, em termos estilísticos, Suellen parece uma personagem bastante plausível, coerente com, por exemplo, Rick (Caio Macedo), mas contrasta com a unidimensionalidade de Arauto e Telma.
Não há dúvida que o assunto principal de “Pedágio” é importante. Não seria necessariamente ruim uma abordagem direta e explícita – seria, talvez, menos sofisticada. O que decepciona é que, dessa vez, Carolina Markowicz não consegue criar uma obra impactante como outrora, capaz de estimular a reflexão do (ou sensações no) público durante e após a sessão. O espectador sensato vai dar algumas risadas, o que é muito menos que o tema merece.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.