“FAHRENHEIT 451” -Incineração de qualidades cinematográficas
FAHRENHEIT 451 é uma adaptação da obra literária homônima escrita por Ray Bradbury em 1953. O livro tornou-se célebre por imaginar um futuro distópico calcado em uma sociedade coercitiva e fascista, numa linha também seguida por “1984“. Já o filme oscila entre acertos em suas escolhas estéticas e deficiências no desenvolvimento dos personagens e do tema central. Há a sensação de que o longa metragem não consegue dar conta da profundidade dos temas e das reflexões suscitadas pela história original.
A trama se localiza em um futuro opressivo dominado pela tecnologia, no qual livros são proibidos e queimados por uma força tarefa da qual faz parte o protagonista Guy Montag. As pessoas que ainda resistem a essa proibição são chamadas de rebeldes e sofrem perseguições do Estado. A estabilidade do trabalho e das crenças de Montag é colocada em xeque quando conhece a jovem misteriosa Clarisse McClellan, que o faz contestar sua conduta e o sistema instituído. O primeiro ato da produção consegue fazer o público mergulhar naquele universo e compreender seu funcionamento: a presença constante da tecnologia é demonstrada por painéis eletrônicos que mostram as ações dos “bombeiros” em toda a cidade, pelo uso das redes sociais pelos habitantes que registram tudo o que acontece e pela existência de uma inteligência artificial fiscalizadora em todas as residências (chamada Yuke). O processo de queima dos livros é explicado por algumas sequências que descrevem a rotina dos homens envolvidos nessa tarefa (inclusive, discursando para crianças sobre a importância de seus atos).
As turbulências começam a aparecer a partir do segundo ato, quando o enredo se torna mais complexo. Diversas lacunas consideráveis a respeito das implicações daquele mundo saltam aos olhos: como a sociedade chegou àquela condição? Como foi possível adquirir apoio de parte significativa da população? Qual interpretação negativa é atribuída à literatura? Dessas principais questões, apenas a última citada recebe alguma atenção do roteiro, por mais que seja bastante apressada. A visão deturpada de que o conflito de opiniões acerca de um livro poderia gerar conflitos sociais graves – exigindo, portanto, a eliminação de qualquer debate entre partes divergentes – é lançada na narrativa dentro de um diálogo escrito, aparentemente, apenas para cumprir uma obrigação de constar no filme. Esse e outros aspectos ainda mais densos são inseridos com pouquíssimo cuidado e desenvolvimento, criando uma confusão narrativa de temas e problemáticas empilhados uns sobre os outros (todo o conflito durante o segundo ato em torno do termo “Omni” é incompreensível).
A irregularidade do segundo e terceiro ato também se evidencia na direção instável de Ramin Bahrani. O cineasta é eficiente na construção de planos muito expressivos do ponto de vista estético e temático, especialmente quando relaciona o ato de queimar livros com os aparatos tecnológicos disponíveis na sociedade (quando determinada personagem morre queimada, sua decisão de filmar essa morte num plano geral sobre os painéis da cidade se revela um profundo acerto). Contudo, a condução da narrativa é bastante confusa, não permitindo ao espectador compreender espacialmente como os acontecimentos se ligam e quais são as consequências das atitudes dos personagens. Quem mais se prejudica com isso é o protagonista e seu arco dramático: suas dúvidas iniciais surgem aleatórias e despropositadas, o desenvolvimento de seus questionamentos começa a fazer sentido quando assiste a uma morte brutal e o desfecho de sua evolução vem apressado e pouco convincente.
Tais problemas se refletem nas atuações principais do elenco. As atuações masculinas são oscilantes, nem tanto por falhas dos atores, mas por incongruências do roteiro e da direção: Michael B. Jordan, vivendo Guy Montag, consegue transmitir o carisma e a prepotência iniciais pedidos pelo personagem, porém sente dificuldades em demonstrar os conflitos internos e as transformações atravessados (já que seu arco carece de refinamento narrativo); já Michael Shannon, vivendo o capitão Beatty, consegue evocar uma postura obsessiva e imponente em uma posição de autoridade capaz de praticar as maiores atrocidades (características que podem ser vistas em outros trabalhos do ator, como “A forma da água” e “O abrigo“), porém não incorpora completamente as contradições de seu personagem (todos os momentos em que Beatty aparece escrevendo pequenas frases em pedaços de papel parecem situações desperdiçadas de um potencial enriquecimento dramático). O mesmo não pode ser dito da personagem Clarisse, vivida por Sofia Boutella, que convence como uma rebelde na tênue linha entre seguir seus ideais e se aproveitar do sistema para enfraquecê-lo por dentro (apesar de possuir pouco tempo de tela, aproveita bem seus momentos importantes).
Do ponto de vista estético, também falta equilíbrio ao filme. O design de produção procura diferenciar os ambientes virtuais dos cenários onde se encontram os livros, realçando suas peculiaridades: os primeiros são retratados em espaços mais imponentes e com um estilo artificial que representa o avanço contínuo da tecnologia; já os últimos, em locais mais fechados e limitados (mas nem por isso menos aconchegantes) e com um estilo arquitetônico mais antigo. Essa diferenciação somente é prejudicada pelo excesso de sequências fotografadas com uma iluminação muito escura. Esse problema na fotografia é amenizado em sequências que utilizam as cores em neon dos painéis eletrônicos ou as chamas do fogo para criar contrastes interessantes.
Ao fim de 1h40 de projeção, “Fahrenheit 451” derrapa ao tentar tratar tema tão complexo de forma simplificada e superficial. Ao menos, ele tem a proeza de despertar a curiosidade em relação ao livro. Pena que a sua maior qualidade não resida sobre sua própria narrativa cinematográfica.
Um resultado de todos os filmes que já viu.