“MEU NOME É GAL” – Edição de show [25 F.Rio]
Gal Costa é uma das vozes paradigmáticas da música popular brasileira. Nascida em Salvador em 1945, ela começou a ganhar projeção nacional ao trabalhar próxima a nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé e Torquato Neto. Na década de 1960, o Tropicalismo impactou a cena cultural do país a ponto de chamar a atenção do público e da ditadura civil-militar. A importância da cantora é tema do documentário “O nome dela é Gal” de 2017 e, mais recentemente, do longa de ficção MEU NOME É GAL. Entretanto, a ficcionalização não se aproxima da grandeza da artista.
A trajetória de Maria da Graça Costa Penna Burgos até se tornar a famosa Gal Costa é retratada a partir do momento em que viaja para o Rio de Janeiro nos anos 1960. Ela recebe o apoio dos amigos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia para enfrentar a timidez e conquistar seu espaço na música nacional. À medida que o Tropicalismo se forma e se projeta no Brasil, a cantora consegue os primeiros sucessos de sua vida profissional até sofrer com a depressão de ver dois amigos levados presos e exilados pela ditadura.
Cinebiografias musicais são obras muito presentes no cinema brasileiro contemporâneo, aproveitando-se da grande quantidade de artistas renomados na história do país. “Dois filhos de Francisco” sobre Zezé di Camargo e Luciano, “Cazuza – O tempo não para” sobre Cazuza, “Elis” sobre Elis Regina, “Minha fama de mau” sobre Erasmo Carlos e outros títulos se interessaram pela reconstrução das histórias de vidas de pessoas admiradas por um público ávido por conhecer mais sobre seus ídolos. Diferentemente do que as biografias em geral costumam fazer, a dupla de diretoras Dandara Ferreira e Lô Politi não pretende reconstituir toda a trajetória da protagonista. O interesse não é partir da infância para mostrar como Gal Costa começou a se relacionar com a música até chegar à fama, mas abordar o recorte histórico chamativo da efervescência da década de 1960. O grande problema é querer homenagear a cantora o tempo todo, tornando-a uma figura sagrada.
O tom da narrativa é monotemático, pois constrói e reforça constantemente a imagem de perfeição da personagem. A todo instante, alguém verbaliza como a mulher é talentosa, tem uma voz inigualável e pode ser o futuro da música popular brasileira. O ápice da homenagem ilimitada acontece quando ela é posicionada em frente a um outdoor em que se lê a palavra incomparável, mais um adjetivo atribuído à artista. Em contrapartida, o filme até tenta inserir subtramas conflituosas que a façam enfrentar barreiras ou ser humanizada, porém os arcos em questão são criados de forma frágil sem impactos efetivos. Por um lado, o roteiro caracteriza a jovem como alguém excessivamente contida que teria dificuldade para cativar o público e fazer um clipe; por outro, algumas cenas depois mostra uma mulher espontânea que experimenta a liberdade da juventude com os amigos. Do mesmo modo, a aparição de sua mãe poderia ser uma ferramenta de conflito geracional se, de fato, alguma diferença de personalidade ou de visão de mundo causasse desentendimentos entre elas, o que não ocorre.
Logo, existem limitações para o trabalho de personificação de Gal Costa. Sophie Charlotte até pode representar a cantora com a força dramática que certos momentos pedem, como as apresentações musicais, em especial aquela em que canta “Divino maravilhoso” e repete ardorosamente o verso “É preciso estar atento e forte”. Apesar disso, tais momentos são pontuais e não formam um conjunto regular. Ao fim e ao cabo, a atriz parece não conseguir penetrar no íntimo da personagem para dar nuances a ela que pudessem evidenciar a complexidade e o espírito de uma época. Além disso, a narrativa confere um espaço e um tempo de tela tão grandes ao ator Rodrigo Lelis que quase faz Caetano Veloso ser o protagonista. A personalidade artística crítica, a origem de canções relevantes e os debates artísticos relacionados ao Tropicalismo ocupam um papel preponderante no primeiro ato, diluindo assim a presença de Gal Costa e de sua trajetória musical. O resto do elenco cumpre o papel de ser referências a serem reconhecidas pelo espectador, como Maria Bethânia e Gilberto Gil, ou atingir o que se espera dele de forma direta, como o humor do empresário vivido por Luis Lobianco.
Em outras palavras, a própria abordagem laudatória da cantora passa por problemas na execução de sua trajetória. Enquanto a homenagem excessiva faz o filme se assemelhar a um programa especial com um compilado dos melhores momentos de carreira, a reconstituição do período sofre com a desorganização cronológica e com o tratamento convencional dos arquivos de época. Mesmo que a intenção não seja fazer uma biografia tradicional que passeia por todas as fases da vida da biografada, a sensação deixada é a de que se prefere criar um mosaico de cenas famosas reconhecíveis pelo público a dar uma sucessão organizada de eventos e experiências de vida. Como consequência, a narrativa salta de um ano a outro ou embaralha a temporalidade sem fazer uso significativo do momento histórico que trabalha. Quando imagens documentais são utilizadas ou trechos encenados pelos atores recebem um tratamento visual típico de documentário, este recurso é empregado apenas para marcar a passagem do tempo ou ilustrar algo apresentado pelos diálogos.
É verdade que a abordagem celebratória em si mesma cede espaço ocasional para a obra flertar com uma questão mais interessante: a relação dos artistas tropicalistas com as condições políticas vigentes. Por um breve período, a narrativa amplia seu olhar para comentar o autoritarismo da ditadura nos anos 1970, intensificado pela repressão que atingia os “subversivos” através de prisões arbitrárias, censura, desaparecimentos, exílios e assassinatos. Nesse sentido, a cinebiografia insinua que pode tratar da interação entre biografada e contexto a partir do segundo ato, chamando atenção para o valor da arte em tempos ditatoriais. No entanto, as passagens são superficiais e abordadas rapidamente para que seja possível retornar logo à homenagem à protagonista. É como se o tópico precisasse ser cumprido como uma obrigação de reconstituição de época sem despertar maiores interesses pelas diretoras. Em função disso, as referências à violência do período são indiretas (alguém fala sobre o aumento de prisões), parte de um pano de fundo (a transmissão do rádio sobre a Lei de Segurança Nacional) ou ilustrações visuais sem autonomia (as consagradas imagens de perseguição policial pelas ruas).
De certa maneira, “Meu nome é Gal” lembra o que foi feito em “Bohemian Raphsody“. A trajetória do artista e a construção de uma ideia dramática para o filme são escanteadas em favor da reconstrução pela ficção de momentos icônicos isolados. O que mais parece importar é a possibilidade de ver um grande show ou uma canção famosa aparecer em tela, desejos que poderiam ser satisfeitos com a busca por vídeos no YouTube. Esta cinebiografia em questão, inclusive, passa muitas vezes a impressão de que sequências musicais foram pensadas para permitir reações entusiasmadas da plateia antes de outra sequência se iniciar. Impressão reforçada pelo desfecho abrupto que mais uma vez invoca um evento conhecido da carreira musical de Gal Costa nos festivais da época para cair nas armadilhas dos filmes baseados em histórias reais: a necessidade de encerrar com imagens de arquivo do biografado. É mais um recurso que apela à homenagem e enfraquece a construção como filme.
*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.