“O ECLIPSE” – A náusea que eclipsa a existência
Quando o espaço entre um corpo celeste e um astro que o ilumina é preenchido, ainda que parcialmente, por outro corpo celeste, ocorre um eclipse. Logo, eclipsar significa privar algo da luz que o ilumina. A luz a que O ECLIPSE se refere é uma luz individual, social e existencial, como se a humanidade, corporificada por uma personagem em especial, estivesse em um vazio angustiante decorrente de um materialismo cada vez mais deletério. Isso não significa, porém, que a luz não possa retornar.
Vittoria não quer mais continuar seu relacionamento com Riccardo. O motivo? Nem ela sabe dizer ao certo. Não muito tempo depois do término, ela conhece Piero, por quem se apaixona. Nada garante, todavia, que as dificuldades que tinha com Riccardo, independentemente de quais eram, não possam retornar.
Há um incômodo que paira sobre Vittoria, interpretada pela musa de Michelangelo Antonioni, Monica Vitti. A atriz é uma ótima escolha de Antonioni porque transmite o constante incômodo da protagonista sem exagerar na medida desse incômodo. Com Anita (Rossana Rory), Vittoria admite estar “cansada, deprimida e desorientada”, uma das poucas ocasiões em que ela verbaliza seus sentimentos, contudo sem atribuir-lhes a causa, o que dificulta o trabalho de Vitti. O roteiro, escrito por Antonioni e Tonino Guerra (com a colaboração de Elio Bartolini e Ottiero Ottieri), é pouquíssimo verbal, mas não por isso menos rico.
Diante da pouca verbalização, o diretor preenche as lacunas textuais com uma mise en scène primorosa. Vale lembrar que “O eclipse”, de 1962, é o terceiro da que ficou conhecida como “trilogia da incomunicabilidade” do cineasta, tendo sido precedido de “A aventura”, de 1960, de “A noite”, de 1961 (ambos com Vitti no elenco). Vittoria é tradutora, então lida com comunicação, todavia, ironicamente, a comunicação para ela não é fácil. Quando Riccardo (Francisco Rabal) lhe pergunta desde quando ela não mais o ama, sua resposta é lacônica porque não poderia não sê-lo: “não sei”. A outra face desse minimalismo comunicacional é o desespero de Riccardo, disposto, em um primeiro momento, a fazer “qualquer coisa” por ela, para depois partir para uma estratégia mais ofensiva ao tentar abrir a porta da casa de Vittoria à força.
O desespero não é só de Riccardo, mas de, não à toa, todos aqueles detentores do capital. É aqui que entra a crítica de Antonioni ao materialismo (no sentido de valorização dos bens materiais), representado sobretudo pela selva do mercado de ações. Mesmo um minuto de silêncio na Bolsa não pode ser pleno, a morte não é respeitada completamente, pois os telefones não param. Novamente não à toa, os telefones param quando o Piero (Alain Delon) os tira dos ganchos, o que ele faz para poder ter momentos românticos com Vittoria. É a preponderância do amor sobre o dinheiro, ao menos naquele momento. Antonioni contrapõe de maneira radical a calmaria, quase agonizante, em que vive Vittoria, ao comportamento animalesco dos agentes da Bolsa. Entre esses agentes está até mesmo a mãe da protagonista (personagem sem nome vivida por Lilla Brignone), que – catapultada pelo desespero, novamente ele – recorre à superstição (sal) para ter sorte e prossegue na irracionalidade para explicar a má-sorte (teorias conspiratórias).
Piero também está engajado nesse universo materialista, o que explica a demora para o romance se desenvolver (depois de uma hora de filme). A entrega não é fácil, Vittoria tem receios que a fazem, por exemplo, desviar de um beijo. A casa de Piero é ainda maior e mais suntuosa que a de Riccardo, seria ele igual ao ex? Vittoria está no ambiente de frivolidade, como aquele representado pelo passeio de avião (quem perguntaria qual o tipo de nuvem?), mas é isso que lhe causa angústia e demonstra a crítica de Antonioni. A náusea existencial não decorre da falta de sentido no mundo, tal qual a sartreana (embora haja similaridades com “A náusea”), mas do sentido materialista que ele adquiriu, com a fragilidade da paz e a corrida nuclear, expressamente citadas.
Há, portanto, um mal que acomete Vittoria e também a sociedade, eclipsando valores como o amor. Esse mal gera um vazio (a caminhada da protagonista pela estrada, em meio ao nada, sem carros nem pessoas), pode levar a uma aparente tranquilidade diante do desalento (o homem que desenha flores depois de perder cinquenta milhões) e faz com que a entrega ao amor resulte em desconforto (o vestido de Vittoria ao rasgar). Ver o Quênia pelos olhos de Marta (Mirella Ricciardi) é um verdadeiro escapismo.
Para tornar seu filme naturalista, Antonioni usa planos longos e evita músicas extradiegéticas, salvo mais ao final. Para ser simbólico, Vittoria usa vestidos escuros em momentos mais dramáticos, como na cena inicial, cuja decupagem é geométrica e milimetricamente pensada (ela se deita no sofá de costas, mas se vira, sem encontrar uma posição confortável; o ângulo plongée ratifica sua decisão de rompimento…). A primeira música que é tocada durante os créditos é alegre, mas interrompida por outra, mais sombria: é a passagem do júbilo à agonia, da euforia à amargura. É isso mesmo que se segue, uma desesperança sufocante associada à náusea existencial. O plano final, por outro lado, é uma luz otimista sugerindo que o eclipse vai se encerrar.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.