“UM POUCO DE MIM, UM POUCO DE NÓS” – Pouco pessoal, pouco documental
Nos últimos anos, os negacionismos históricos e científicos têm crescido. Escravidão, vacinação, aquecimento global, ditaduras e sistemas eleitorais são alguns temas atingidos por narrativas negacionistas. UM POUCO DE MIM, UM POUCO DE NÓS se insere em um contexto de combate às falsificações do Holocausto, sobretudo aquelas que duvidam do número de judeus assassinados e consideram o genocídio uma fantasia conspiracionista. Entretanto, a urgência contextual e as boas intenções de sua realização não resolvem os problemas de representação pessoal e documental.
Determinadas perguntas moldam o documentário. O que o passado tem a nos dizer e alertar acerca do presente? Como a história pode nos ensinar a não repetir horrores de outras gerações? Tais interrogações começam a ser trabalhadas a partir dos relatos de sobreviventes da violência nazista que reconstruíram suas vidas no Brasil. À medida que a narrativa avança, jornalistas e estudiosos refletem sobre a repetição de fenômenos brutais na história e as possibilidades de ação contra a reincidência dos mesmos erros.
O maior mérito está na coletânea de depoimentos de sobreviventes registrados. Não se quer empilhar um número extenso de entrevistas porque, nesse caso, a quantidade poderia ser prejudicial e algumas histórias de vida iriam se sobrepor a outras. Então, cada uma delas é valorizada em sua especificidade, como a tragédia sofrida por Miriam Nekrycz em uma floresta na Europa, a impossibilidade de Sarah Lewin continuar os estudos de piano, as humilhações sofridas por André Stern pelo antissemitismo na escola e o sucesso orgulhoso de Joshua Strul ao recomeçar a vida no Brasil. A cada momento em que o público pode assistir a um relato, a oralidade faz transbordar a riqueza do testemunho como uma via de acesso a outros tempos históricos. Em decorrência disso, ganha importância as relações que se estabelecem o diretor André Bushatsky e alguns entrevistados. Antes de proporcionarem fontes orais, são pessoas de trajetórias, personalidades e sensibilidades únicas que elogiam o documentarista ou apreciam presentes recebidos.
Além de reconstruir passagens do Holocausto através dos testemunhos, o filme precisaria dar seu próprio olhar ao tema. Porém, o cineasta não consegue definir um princípio artístico claro. Levando em conta o título e um conhecimento extradiegético, é possível identificar o caráter íntimo do documentário para André Bushatsky, que teve familiares perseguidos pelo nazismo. Se não fossem por essas informações, não se poderia perceber uma dimensão pessoal, pois a abordagem formal não propõe qualquer traço de uma investigação por interesses familiares. Ele percorre ruas, praças e monumentos em memória do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial existentes em Berlim acompanhado por uma guia especializada sem dar a essas cenas um componente subjetivo de sua história familiar. Nem mesmo abordar as particularidades das fontes materiais e dos patrimônios históricos se torna um objeto de reflexão, já que são descritos de forma sucinta para se passar rapidamente para outros aspecto da proposta.
Em termos estruturais, a narrativa sugere um tom pessoal ao mostrar o realizador frequentando lugares de memória e indo entrevistas os sobreviventes. Na prática, a presença do documentarista não se reflete em alguma construção estilística expressiva e se configura como uma decisão burocrática que não aproveita suas possibilidades semânticas. Ele está no quadro apenas para ser filmado fazendo uma pergunta ou ouvindo uma resposta. Nesse sentido, por mais que algumas escolhas cênicas pareçam típicas de um documentário participativo ou conscientes de sua condição fílmica subjetiva, a abordagem documental é bastante convencional. A força das trajetórias individuais é constantemente interrompida por sequências explicativas de vozes de autoridade sobre as origens do nazismo e os paralelos com problemas contemporâneos; já quanto ao uso de imagens de arquivo, o registro não poderia ser mais dependente do discurso oral por ser mera ilustração comprobatória do que se fala. A maneira como esse classicismo é executado empobrece o alcance emocional da tese desenvolvida.
Chegado o momento em que os sobreviventes contam suas experiências ao vir para o Brasil, o filme redefine os rumos de seu raciocínio. A libertação dos campos de concentração ou a fuga de outros ambientes hostis conduz à questão da migração forçada de indivíduos pelo mundo. Como lidar com a xenofobia e os movimentos nacionalistas extremistas? De que forma a exclusão social e a pauperização de imigrantes e refugiados no presente se relacionam com a violência nazista do passado? O que fazer para enfrentar os preconceitos da atualidade? Em sua estrutura, a narrativa tem dificuldades para costurar a passagem de um tópico a outro pertencentes a temporalidades diversas. Quando começa a tratar das contradições dos movimentos migratórios atuais, a obra parece se transformar em outra muito diferente sem tanto vínculo com a anterior. Simultaneamente, o roteiro escrito pelo cineasta salta de um tópico a outro sem se aprofundar em nenhum deles por conta da breve duração do documentário e das tentativas frustradas de dar uma imagem complexa ao que, na realidade, é apresentado superficialmente.
Tematicamente, a transição do passado para o presente também sofre com ideias discutíveis ou com simplificações de análise. Entre os entrevistados, estão os jornalistas Caio Blinder e Pedro Bial, o filósofo Mário Sérgio Cortella e a professora e economista Claudia Costin. Apesar de Pedro Bial compartilhar memórias familiares, todos participam mais como especialistas que teorizam sobre o tema em função de suas experiências profissionais. Porém, alguns pensamentos carregam sérias contradições. Mário Sérgio Cortella insinua que a intolerância é uma característica essencial da natureza humana, logo não precisaria ser contextualizada dentro das particularidades de cada período histórico. Em outro momento, Pedro Bial tenta argumentar que o Brasil seria um exemplo de local de convivência harmoniosa para as diferenças, um argumento que ignora os efeitos da escravidão, do patriarcalismo e de outras formas de preconceito no país. Em geral, as intolerâncias e perseguições contra imigrantes e refugiados que têm ocorrido na atualidade são entendidas como persistência da violência já praticada em outros tempos, deixando de citar fenômenos mais recentes como a globalização e crises contemporâneas do capitalismo.
Representar no cinema a história do Holocausto e suas consequências coloca em questão a problemática de narrar em imagens o indizível de experiências sensíveis, dolorosas e traumáticas. Como seria possível narrar visualmente as atrocidades cometidas pelos nazistas sem banalizá-las ou espetacularizá-las? “Um pouco de mim, um pouco de nós”, como qualquer outro filme sobre a temática, precisa lidar com o desafio. Em parte, tenta administrar essa dificuldade a partir do envolvimento pessoal de André Bushatsky. Em parte, tenta dar conta de tamanha complexidade através da reconstrução documental dos vestígios de fontes materiais ou orais da época. Em ambos os casos, o documentário tem pouco a apresentar ou a desenvolver sobre a relação do cineasta com o tema, além de ter pouco a reconstruir sobre alguns recortes da realidade.
Um resultado de todos os filmes que já viu.