“FALE COMIGO” – Ainda o pós-horror?
O cinema de terror hollywoodiano vive hoje em uma espécie de pêndulo, ora oscilando entre polos opostos, ora atraído a um centro comum. De um lado, as tentativas de blockbusters do horror, filmes mais propriamente de mercado, dependentes de incontáveis muletas formais (não há motivo para bater mais no cachorro morto dos jumpscares), e que são, figurativa e por vezes literalmente, subprodutos do fenômeno “Invocação do mal”, que em 2023 já completa 10 anos. Do outro lado, o que uns batizaram de pós-horror, tentativas – que remontam ao sucesso de obras como “A Bruxa” ou “O Babadook’, e que ganharam grande fôlego com o “Hereditário” de Ari Aster – de um cinema mais prestigioso, de elevar (como se preciso fosse) o horror à seriedade, filmes que tentam se calcar em certo realismo, estes dependentes de muletas dramáticas. Tanto em um, quanto em outro, a falta do fantástico, e do horror em essência, não como artifício ou metáfora. FALE COMIGO, primeiro longa dos youtubers e irmãos australianos Danny e Michael Philippou, está mais sintonizado com o segundo desses grupos, ainda que flerte sintomaticamente com o divertimento do primeiro.
O longa conta a história de Mia, adolescente de seus 17 ou 18 anos de idade que sofre profundamente com a morte relativamente recente de sua mãe em circunstâncias mal explicadas.
A obra cumpre, de imediato, o mais importante requisito do chamado pós-horror: é “sobre algo”, trata de um “grande tema”. Aqui, trata-se do luto – não o de uma família com a perda de uma filha, como em “Hereditário”, mas o de uma filha com a perda de sua família.
Filmes de terror, é claro, sempre foram “sobre” alguma coisa, mas nas grandes obras do gênero, o discurso emerge do horror, é produto dele. No manual destes novos “filmes de terror de prestígio”, o horror emerge do discurso, é vassalo dele – e aí não há horror nenhum, só arapuca, só paráfrase de palavras em imagens. É, em geral, o problema de “Fale comigo” também. Se o filme demora para “engatar” é por que, em essência, ele depende do drama pessoal de Mia para se sustentar, e nesse âmbito Danny Philippou e Michael Philippou são, no máximo, inócuos. Não há nada de alarmante no tratamento das dinâmicas familiares e dos círculos de amizade da protagonista, mas também não há nada de minimamente memorável, provocativo, instigante. A sensação não é de assistir a um atento estudo de personagem, mas de assistir à preparação de algo que só serve ao que vem a seguir. O filme não perde tempo com construções de mitologias baratas ou com explicações protorrealistas para os acontecimentos macabros que vemos, o que em si já é positivo, mas o drama instrumentalizado faz as vezes desse tipo de justificação.
Tudo, dessa forma, se torna profundamente previsível – é só somar a falta de respostas sobre a mãe de Mia (Sophie Wilde) com as possibilidades mágicas de falar com espíritos apresentadas pela misteriosa mão embalsamada que seus amigos possuem, e fica evidente que esses dois polos do plot irão se unir. Não só, mas como irão se unir também, já que os Philippou não são exatamente inabilidosos nos quesitos imaginação estética e estrutura narrativa, mas não fazem questão alguma de problematizar, complexificar ou escapar das cansadas fórmulas que ditam o (pós-)gênero.
Há, entretanto, exceções a isto, o que torna “Fale comigo” uma experiência um tanto frustrante. Há imagens no filme de genuína potência visual, nas quais há espaço para verdadeiro horror visceral, em geral aqueles envolvendo o Riley do jovem Joe Bird, que rouba incontáveis sequências e carrega nas costas uma perturbadora cena (um perturbador plano, em específico) já no terceiro ato. Os Philippou também flertam, pontualmente e com relativo sucesso, com o deboche via horror cômico (justamente aquilo que os alçou à fama com o canal RackaRacka), para o qual possuem muito mais vocação do que para o horror dramático que toma conta desse filme de estreia. A cena das sucessivas possessões ao som de “Amen” de Mitosan é especialmente marcante, e encapsula bem a mistura – da qual os Philippou são, como a maioria, tanto criadores culpados quanto vítimas participes – de performatividade, vício, pressões sociais e banalização do perigo que tanto marcam a vivência hiper-real da geração Z.
“Fale comigo” não é nem de longe o grande filme que os ávidos defensores do pós-horror estão tentando vender. Não é, também, nem de longe um dos piores exemplares do gênero como alguns detratores podem afirmar. Nos piores momentos, um marasmo de drama soturno, sofrimento aparelhado; nos melhores e mais raros, conscientemente ou não, aponta, de certo sem muita firmeza, para alguma reconciliação entre o horror e o lúdico, e entre o discurso e sensível.