“ASTEROID CITY” – Universo, existência e arte
Forma e conteúdo são sempre indissociáveis no cinema. A forma não é mera decoração para o tema e o conteúdo encontra sua expressão final a partir de escolhas formais. Se essas afirmações valem para o cinema como um todo, imagine para ASTEROID CITY, novo filme de Wes Anderson. Conhecido por uma assinatura visual inconfundível, o diretor já foi criticado como alguém que se encontra refém do próprio estilo. Em seu último trabalho, tal crítica parece cada vez mais despropositada ao ter que se justificar para uma narrativa que encontra novas possibilidades em meio a um conjunto de marcas tão conhecidas.
Na cidade fictícia de Asteroid City no deserto dos EUA, uma convenção de Astrônomo Júnior/Cadete Espacial é organizada na década de 1950. Pais levam seus filhos para participarem de uma competição científica que disponibiliza uma bolsa de estudo para o vencedor. O evento acontecia também em celebração ao dia em que um meteorito se chocou com o solo do local e abriu uma larga cratera. Tudo corria na mais perfeita tranquilidade até um evento espacial de grandes proporções impactar aquelas famílias e o mundo todo. E esta história chega até o público encenada como uma peça teatral.
De uma forma ou de outra, os personagens principais que se reúnem naquela cidade desértica estão perdidos. Augie perdeu a esposa, levou muito tempo para contar para os filhos a respeito da morte da mãe e não tem uma boa relação com o sogro Stanley. Midge é uma atriz que passa por uma crise profissional em relação ao tipo de trabalho que gostaria de fazer e às propostas recebidas, algo que influencia sua vida pessoal. E o General Grif Gibson recebe ordens diretas do presidente dos EUA para controlar o lugar após o contato com um ser alienígena, mas ninguém o obedece e a situação sempre sai de seu controle. Mesmo os adolescentes se encontram atormentados com dilemas sérios quanto ao sentido da vida, como Woodrow que acredita que essa pergunta pode ser respondida estudando o que há fora da Terra e outro estudante que pede desafios a todos ao seu redor para tentar ter sua existência reconhecida.
A melancolia dá o tom da condição desses e de outros personagens. Como então lidar com as angústias de vidas tumultuadas por perdas ou incógnitas complexas? Wes Anderson responde à questão primeiro com a própria interação de figuras excêntricas que, possivelmente, não encontrariam o mesmo refúgio em outro ambiente com outras pessoas. O diretor demonstra muita empatia por elas, identificando-se com cada uma e estimulando o público a fazer o mesmo. As dinâmicas em cada núcleo fazem com que os personagens se sintam menos angustiados e encontrem um ponto de apoio ou de comunhão, sendo sempre motivados por personalidades singulares em momento igualmente inusitados. É assim que os jovens estudantes se aproximam através de um jogo da memória que ninguém mais se interessaria; que Augie e Midge conversam sobre fotografia e atuação através das janelas de suas casas alugadas; que uma aula de Ciências sobre o sistema solar se transforma em uma música country de homenagem ao alienígena; e que todos os visitantes participam das atividades de comemoração pelo choque do meteorito tempos atrás.
Os personagens também são acolhidos pelo universo onde estão. Se suas vidas são melancólicas e eles se sentem marginalizados pela sociedade, Asteroid City os recebe com a vivacidade e a beleza visual de uma cidade que apenas poderia ser concebida pelo estilo de Wes Anderson. Ao lado do designer de produção Adam Stockhausen e do diretor de fotografia Robert Yeoman, o cineasta cria um mundo próprio dotado de suas famosas características estéticas: as cores quentes (em especial, amarelo, laranja e vermelho), o travelling lateral ou vertical como movimentos de câmera consagrados, a profundidade de campo elevada e a composição de quadros em que os personagens são posicionados na lateral ou, eventualmente, no centro da imagem para enfatizar o cenário. Como acréscimo a esse estilo, a locação é construída no deserto como uma mistura de cidade de interior abandonada, área desenhada para testes científicos e ambiente artificial próprio de brinquedos infantis semelhante ao feito por “Barbie“. O que poderia ser contraditório, um universo caloroso para figuras entristecidas, não só é orgânico como também envolve emocionalmente quem está à procura de um sentido para suas vidas.
É verdade que uma adição interessante ao trabalho criativo de Wes Anderson em sua carreira recente é a metalinguagem. Em “A crônica francesa“, ele já havia se debruçado sobre a narração de histórias, no caso feita pelo jornalismo. Dessa vez, o exercício metalinguístico está na apresentação da trama que vemos como uma peça teatral. Em paralelo aos eventos ocorridos no deserto, a narrativa mostra como o autor Conrad Earp escreveu a obra e escolheu os atores para interpretá-la por meio da apresentação de um documentarista. Além de evidenciar o processo do fazer artístico (por exemplo, identificando o número de cenas e de atos) e de diferenciar esse outro núcleo através de uma iluminação em preto e branco, a metalinguagem ainda proporciona momentos cômicos e dramáticos expressivos. É o humor que descreve a aparição repentina do documentarista antes da hora próximo aos atores durante o trabalho e o drama que retrata a saída de cena do ator que interpreta Augie para debater uma questão do roteiro com o dramaturgo. Se a forma de um filme não é um artifício decorativo, que efeito a reflexão sobre a própria arte tem para o filme?
O diretor não tem pressa nenhuma de propor possibilidades para o uso da metalinguagem nem fecha as considerações em uma resposta definitiva. Enquanto ele constrói e desenvolve a narrativa, o espectador pode assimilar de modos diversos a combinação entre uma história singular de ficção científica no estilo do realizador e a reflexão metalinguística. Durante o processo, Wes Anderson também apresenta escolhas formais interessantes e criativas dentro de suas marcas autorais. A ligação telefônica feita por Augie para Stanley é filmada com a tela dividida para indicar no mesmo quadro personagens em posições opostas até ser necessário emular um “confronto” entre os dois, quando então os atores são dispostos em cena para parecerem que estão um de frente para o outro. Em outros momentos, a conversa entre Augie e Midge trabalha com desenvoltura os contornos dos batentes das janelas para representar a relação entre eles. Nas sequências em que há os eventos espaciais e a dramatização da preparação da peça, a mudança de iluminação para o preto e branco ou para cores estilizadas criam efeitos dramáticos ou cômicos.
Conforme a narrativa se desenrola, a metalinguagem se encontra ainda mais com a trama de ficção científica através das dúvidas de Augie e Conrad. “Por que ele queima a mão?” e “Não entendi ainda sobre o que é a peça” são questionamentos que perpassam os dois personagens e culminam na ausência de respostas e, consequentemente, na falta de necessidade de interpretações para todos os detalhes. Não é necessário dar explicação racional para tudo porque, em muitos casos, a experimentação de sensações diversas é o mais importante. Experimentar, por exemplo, a sensibilidade artística especial de Wes Anderson, a construção de um universo particular, o reconhecimento de um elenco estelar, o desenvolvimento de personagens excêntricos, o humor em torno dessas figuras transformadas por um fato inesperado e o imaginário político e cultural dos EUA nos anos 1950. Então, “Asteroid city” acredita que as diversas possibilidades da arte podem orientar cada personagem a seguir vivendo apesar das incógnitas encontradas pelo caminho.
Um resultado de todos os filmes que já viu.