“URSINHO POOH: SANGUE E MEL” – Rompimento conservador
Em 1926, foi publicada a primeira edição do livro “Winnie-the-Pooh” de Alan Alexander Milne, inspirada nos brinquedos do filho do escritor. Alguns anos depois, a Disney adquiriu os direitos das histórias de Pooh, Leitão e dos outros animais e as transformou em um rentável franquia com animações e live action. Em 2022, os personagens caíram em domínio público e puderam receber novas abordagens, inclusive dentro do terror. Então, URSINHO POOH: SANGUE E MEL reimagina as clássicas figuras da literatura como assassinos psicopatas acreditando que a premissa por si só já seria uma ruptura suficiente.
Na releitura, Pooh e Leitão foram abandonados por Christopher Robin quando este cresceu e foi para a faculdade. Eles precisam sobreviver na floresta carregando a mágoa e a fúria do abandono, o que os levam a se comportarem como selvagens movidos pelos instintos mais animalescos. Qualquer pessoa que se aproxime da sua floresta corre o extremo perigo de se tornar presa do urso e do porco. É nessa situação que o próprio Christopher e o grupo de amigas de Maria se encontram ao partirem para o local por distintas razões.
A princípio, o diretor Rhys Frake-Waterfield sugere um rompimento drástico com o material original em termos temáticos e formais. A abertura traz uma sequência animada em tom fabular que conta a amizade entre o jovem Christopher e os bichos e reimagina os destinos de todos após a partida do rapaz. O horror dá as caras quando os animais se tornam ferozes para sobreviverem, levando a narrativa a se estruturar como um filme slasher. Logo, as convenções do subgênero são invocadas: as mortes elaboradas, os assassinos silenciosos e mascarados, a ação centrada em um espaço específico… Ainda assim, não há como desvincular de uma proposta absurda que se baseia nas situações inusitadas de ver personagens associados ao lúdico e ao infantil praticando atos violentos. Ao invés de abraçar essa característica, o cineasta tenta um abordagem realista e dramática para o que permanece sendo fantasioso.
Há dois estilos que colidem constantemente e deixam a narrativa dispersa sem uma unidade diegética coesa. Os ataques de Pooh e Leitão são encenados de maneira direta como um slasher à moda antiga que busca gerar reações sensoriais nos espectadores, como ansiedade, medo e repulsa. É assim que o diretor decupa alguns assassinatos, sem rodeios e com poucos planos, inclusive trabalhando os efeitos de luz e sombras de um lâmpada defeituosa no ambiente para aumentar a tensão. Ao mesmo tempo, Rhys Frake-Waterfield imprime uma carga solene, dramática e pretensamente profunda ao universo em si apresentado com planos gerais supostamente expressivos e trilha sonora pungente. Outra questão contraditória é deixar as sequências de ataques na escuridão, já que não se pode ver a construção cênica de cada morte. Além disso, a escolha por essa iluminação segue uma tendência contemporânea de considerar o realismo dramático e a ausência de cortes fortes estratégias de elevação artística do terror.
Que filme se pretende produzir? Um slasher que valorize a frontalidade das cenas violentas de assassinos mascarados ou um terror dramático e realista sobre abandono e trauma? Não há uma definição clara do se quer nem a capacidade de conciliar os dois enfoques. Em determinados momentos, a câmera procura o gore, principalmente ao mostrar os efeitos sanguinolentos de golpes brutais sucessivos nas cabeças das vítimas. Já em outras passagens, a narrativa deseja maior densidade dramática nos arcos de Maria e Christopher. O homem lida com a perda de lembranças positivas de Pooh e Leitão e com o ressentimento de ambos pelo afastamento, mas a obra jamais trabalha o senso de absurdo do conflito. E a mulher tenta se recuperar da traumática perseguição de um abusador indo para um ambiente calmo, porém o caráter psicologizante da subtrama é tratado como um acessório sem importância e ligação com a trama central.
Apesar de abordar a perseguição sofrida por Maria, o próprio filme fetichiza a a violência contra as mulheres sem se dar conta da misoginia desenvolvida. Se foi Christopher o “responsável” pela liberação da selvageria de Pooh e Leitão, por que seus alvos são as personagens femininas? Basta observar o destino de Christopher e o momento em que personagens masculinos são assassinados para perceber que a misoginia não seria um tema discutido, mas uma característica da narrativa. Além das ações dos assassinos, a encenação também cria um “prazer” visual diante das mortes das mulheres na trama. A decupagem enfatiza por um longo tempo os resultados dos ataques a elas como se seus corpos estivessem ali apenas para serem violados por uma câmera invasiva, ao passo que a representação estética sexualiza algumas vítimas (uma delas fica com os seios expostos antes do assassinato e outra é atacada quando está de biquíni na piscina da casa).
Grande parte das irregularidades de “Ursinho Pooh: sangue e mel” vem, então, da incompatibilidade entre uma premissa fabular, absurda e uma abordagem excessivamente séria. No terceiro ato, o cineasta até flerta com o uso mais espontâneo, livre e fantástico que se adequa à releitura de terror quando quatro homens tentam ajudar Maria e sua amiga e são mortos. Em tese, o contra plongée para ampliar a ameaça de Pooh, a violência fantasiosa nos golpes dados pelo assassino e elementos do imaginário cultural em torno do personagem (mel e abelhas, por exemplo) seriam recursos eficientes se não fossem utilizados de forma tão breve a ponto de não serem destacados. Na prática, uma premissa calcada na fantasia, mesmo em outro gênero, se esvazia quando o realismo é inserido para dar um impacto maior ao terror e acaba por drenar suas possibilidades. Nesse sentido, até há um rompimento em relação ao material original, mas muito conservador no que se refere à dinâmica do horror.
Um resultado de todos os filmes que já viu.