“BARBIE” – Uma mistura que poucos conseguem elaborar
A Warner Bros. investiu alto no marketing de BARBIE, fazendo com que o público criasse altas expectativas para o longa. Surpreendentemente, essas já altas expectativas foram superadas: o filme é divertido, inteligente, agradável, original, engraçado e importante.
Na perfeita Barbielândia, todos são perfeitos, da Barbie Estereotipada à Barbie Presidente, do Ken ao Ken. Certo dia, porém, Barbie tem uma crise existencial que afeta os seus atos, a sua fala e mesmo a sua aparência. A solução: ir para o Mundo Real descobrir a origem da crise. E Ken vai junto dela.
A narrativa escrita por Greta Gerwig (que também dirige o longa) e Noah Baumbach (com quem é casada) é de uma jornada arquetípica já vista inúmeras outras vezes. Mundo comum, chamado à aventura e assim por diante, o texto segue a cartilha padrão, inclusive com arquétipos como heroína, mentora, guardões do liminar, arauto e pícaro. O texto é em certa medida previsível e seus momentos de introspecção (Barbie sozinha no banco ou nas conversas com Ruth) são pouco inspirados. Há, porém, um interessante subtexto sobre a diferença entre gerações. Sasha (Ariana Greenblatt) destila um discurso jovem padronizado de demonização da tradição que Barbie representa, associando-a com o fascismo; sua mãe, Gloria (America Ferrera), é saudosa dos tempos em que a vida era menos complicada (muito embora pouco seja revelado sobre as complicações concretas da sua vida atual). “Closer to fine” (Indigo Girls) é a canção que traduz o choque de gerações, já que destoa da trilha, quase inteira de artistas de maior sucesso contemporâneo, aparecendo em uma cena entre mãe e filha.
De todo modo, “Barbie” é sobre cultura. O papel da boneca é festejado nos minutos iniciais através de uma releitura brilhante de uma cena eterna de “2001: uma odisseia no espaço” (não são poucas as referências elogiáveis, outra que se destaca é a de “Matrix”). Barbie mudou uma cultura de brinquedos para meninas, e depois mudou de novo, transmitindo a ideia de que mulheres podem ser o que desejarem: mães, empresárias, mães empresárias, presidentes etc. Na Barbielândia, o feminismo não é necessário, o que não significa, contudo, que os problemas do Mundo Real não reverberam lá. A contraposição entre os dois mundos é o que revela o tema principal do longa, que é a cultura machista e patriarcalista que predomina na sociedade. No Mundo Real, homens olham descaradamente para quem os atrai, um funcionário ignora a secretária do chefe e entra em sua sala, há um monumento rochoso com rostos apenas do homens, as notas de dólar são apenas de homens. Ou seja, os homens dominam e nada acontece.
Não é assim, todavia, na Barbielândia. É lá que a direção exibe os perfis variados das bonecas Mattel (inclusive as descontinuadas) e, principalmente, é lá que o design de produção de “Barbie” é um deleite sem igual. São litros de tinta rosa por todos os lugares, de tons variados e eventualmente alternando com branco. Parafraseando Lizzo, em uma das músicas da trilha (“Pink”), “rosa vai com tudo”; mais que isso, rosa está em tudo: roupas, areia da praia, carro, estrada. O azul, diversamente, é a cor da mudança, aparecendo, por exemplo, no vestuário de Barbie quando ela visita a Barbie Estranha (Kate McKinnon, exalando mais que a peculiaridade da personagem, mas as razões para tal), bem como no carro de Gloria. As transições da Barbielândia para o Mundo Real são esteticamente soberbas, tanto pela beleza visual, quanto pela criatividade em traduzir a falsidade de um mundo de bonecas – da mesma forma, na Barbielândia tudo parece ser feito de plástico.
“Barbie” é um filme de fantasia e comédia. A fantasia serve de invólucro para a denúncia ao machismo estrutural, que é demonstrado de maneira simbólica, mas também, quando necessário, verbalmente (discurso exaltado de Gloria sobre a dificuldade em ser mulher). O bronzeado, loiro falso, descamisado e exageradíssimo (em especial no melodrama) Ken de Ryan Gosling (uma das melhores atuações de sua carreira) aprende sobre o patriarcado a despeito de ele mesmo incorporar a fragilidade masculina (ele sabe que não é nada sem a Barbie). Margot Robbie, a Barbie Estereotipada, faz piada com sua própria aparência à Barbie e brinda o público com uma atuação impecável de uma mescla de inteligência e ingenuidade.
Gerwig usa de recursos estilísticos marcantes como cenas coreografadas e quebra da quarta parede, mas é no humor que reside o que há de mais sublime no longa. Há piadas com o real (piscina sem água) e com o surreal (os “ois” intermináveis); com situações diegéticas (as reações com os pés chatos) e com o extradiegético (“culpe a Mattel”). Sem ser sempre hilário, o filme é sempre inteligente. O machismo é motivo de piada (a “Suprema Corte” no outdoor), assim como suas consequências (o mansplaining dos filmes e dos esportes) e mesmo os homens (obsessões comuns a todos). A comédia consegue ser até mesmo sutil, como na roupa country usada pela dupla principal no Mundo Real (vestuário típico de locais conservadores e machistas) e no muro que está sendo feito (referência a Trump). A mensagem é escancarada, mas desenvolvida de maneira imaginativa e deliciosamente jocosa sem perder a contundência – uma mistura que poucos filmes conseguem elaborar.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.